Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DESPACHO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

PROCESSO Nº 00688.000880/2016-16

INTERESSADOS: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN   e  Advocacia-Geral da União - AGU

ASSUNTO: Abandono de Cargo e Termo Inicial do Prazo Prescricional

Parecer nº GMF - 06 (*)

Adoto, para os fins do art. 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, nos termos do Despacho do Consultor-Geral da União nº 00487/CGU/AGU o anexo PARECER N. 0001/2016/DECOR/CGU/AGU e submeto-o ao EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para os efeitos do art. 40 da referida Lei Complementar, tendo em vista a relevância da matéria versada.

Em  18  de  Setembro  de 2017.

 GRACE MARIA FERNANDES MENDONÇA
Advogada-Geral da União

___________
(*) A respeito deste Parecer o Excelentíssimo Senhor Presidente da República exarou o seguinte despacho. "
Aprovo. Em 18-IX-2017"

PARECER n. 00001/2016/CPPAD/DECOR/CGU/AGU

 

NUP: 00688.000880/2016-16

INTERESSADOS: PGFN e AGU

ASSUNTOS: ABANDONO DE CARGO E TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL.

 

Enunciado CPPAD/DECOR//CGU/AGU nº 001/2016

A infração de abandono de cargo é de caráter permanente, tendo como termo inicial do prazo prescricional o dia em que cessar a permanência.

Referências: Arts. 138 e 142, da Lei nº 8.112/90. RMS 44.619 e RMS 45353, do STJ.

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. MATÉRIA DISCIPLINAR. ANALOGIA COM O DIREITO PENAL. ABANDONO DE CARGO. NATUREZA PERMANENTE. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. CESSAÇÃO DA PERMANÊNCIA.

I - As condutas que são objeto de persecução na esfera administrativa poderão, ante a omissão legislativa administrativa, por analogia e conforme avaliação do caso concreto, obedecer aos mesmos critérios do direito criminal, inclusive quanto a natureza jurídica das infrações e suas implicações quanto à contagem do prazo prescricional.

II - A vontade do agente incide diretamente não apenas para a configuração do abandono de cargo, mas também para a situação de permanência que produz efeitos jurídicos, restando caracterizada, portanto, a prorrogação de sua base consumativa.

III - A infração funcional de abandono de cargo possui caráter permanente e o prazo prescricional apenas se inicia a partir da cessação da permanência.

IV - Deve-se ter a superação (overruling) das razões de decidir (ratio decidendi) sufragadas nos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, com eficácia prospectiva, com base nas recentes decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, na doutrina e na legislação ordinária estadual.

Exmo. Diretor,

1. Trata-se de manifestação da Comissão Permanente de Procedimentos Disciplinares – CPPAD, órgão integrante do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos jurídicos – Decor desta Consultoria-Geral da União cujos objetivos e competências são estabelecidos pela Portaria CGU nº 10, de 2 de fevereiro de 2015, e Portaria CGU nº 15, de 31 de março de 2016.

2. Com efeito, a temática sub lúmen versa acerca da natureza jurídica da infração administrativa de abandono de cargo e o respectivo termo inicial para a contagem do prazo de prescrição direta, isto é, ocorrida antes da instauração do processo administrativo disciplinar.

3. Após identificada a controvérsia e os pontos relevantes para o deslinde da matéria, foram realizados estudos e debates em reuniões com a participação de membros da carreira de Advogado da União, Procurador Federal, Procurador da Fazenda Nacional e Procurador do Banco Central com notória expertise sobre direito disciplinar. Passou-se, então, à etapa de elaboração do Parecer em apreço, cujo objetivo é o aclaramento da controvérsia posta sob exame, de forma a orientar a atuação dos Advogados Públicos em suas unidades jurídicas por todo o país, reduzindo a insegurança jurídica.

4. É, em síntese, o relatório.

I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

5. In limine, deve-se observar que, sem determinadas prerrogativas de direito público conferidas aos agentes administrativos, o Estado não poderia alcançar os fins a que se destina. Esse conjunto de prerrogativas é denominado pela doutrina e jurisprudência nacional de poderes administrativos que, em verdade, são considerados como um poder-dever, tendo em vista que devem ser exercidos em prol do interesse público, sendo irrenunciáveis e limitados pela lei.

6. Nesse contexto, deve-se ponderar que, se por um lado são conferidas aos órgãos e agentes determinadas competências e prerrogativas para o seu exercício funcional, por outro, caberá à Administração Pública o poder-dever de fiscalizar essas mesmas atividades dentro da sua estrutura, o que recebe na doutrina a denominação de controle administrativo. De acordo com José Santos Carvalho Filho1, o fator de importância nesse tipo de controle é o reconhecimento de que o poder de fiscalizar e de rever ocorre dentro da mesma estrutura de Poder, de forma que, em verdade, trata-se de um controle interno, tendo em vista que o controlador e controlado pertencem à mesma organização.

7. Uma dessas vertentes de controle interno é o controle hierárquico ou da hierarquia orgânica que corresponde ao sistema organizacional da Administração que encerra a existência de escalonamento composto de vários patamares, formando o que se denomina de via administrativa2. Ainda sob esta perspectiva, Odete Medauar3, destaca que se trata da verificação que os órgãos superiores realizam sobre os atos e atividades dos órgãos subordinados. Segundo a autora, essa vigilância exercida pelos órgãos superiores da hierarquia foi historicamente a primeira e por longo tempo a única forma de controle que a administração conheceu, tendo em vista que os detentores do poder sempre desejaram direcionar a ação de seus subordinados e dispor de meios de verificar se esta ação se realizava conforme as instruções dadas ou de acordo com a linha geral que seguiram. Portanto, invocaram, desde logo, um direito de vigilância de ofício sobre atos editados nos escalões inferiores e, paralelamente, consentiram que particulares lhes encaminhassem reclamações contra tais atos.

8. Com efeito, e conforme aponta José Santos Carvalho Filho4, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades dos de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se não ocorrer, serem os infratores sujeitos às respectivas sanções, isto é, constitui-se no substrato do próprio Poder Disciplinar.

9. Neste cariz, esse Poder Disciplinar trata da atribuição pública de aplicação de sanções àqueles que estejam sujeitos à disciplina do ente estatal, ou seja, consiste em um sistema punitivo interno e por isso não se pode confundir com o sistema punitivo exercido pela justiça penal, conforme se deflui dos art. 9355, do Código Civil Brasileiro, e do próprio art. 1266, da Lei nº 8.112/90, muito menos com o exercício do Poder de Polícia.

10. Todavia, e como forma de autolimitação desse Poder Disciplinar, vige no sistema jurídico pátrio o princípio geral da prescritibilidade do direito da Administração em apurar os ilícitos administrativos, dentro do prazo previsto em lei, nos termos do § 5º, do art. 377, da Constituição da República, excepcionando-se os casos de danos causados ao erário. Destarte, e com o objetivo de conferir segurança jurídica na relação Estado-servidor, o poder-dever de apurar e punir o agente público faltoso restará prejudicado por inércia da própria Administração, se não o fizer oportuno tempore.

11. Visando regulamentar o supracitado dispositivo constitucional, o legislador federal ordinário previu, por intermédio do art. 142, da Lei nº 8.112/90, a regra geral de contagem dos prazos prescricionais sem adentrar, entretanto, nas especificidades dos diversos ilícitos funcionais, como sói ocorrer no direito penal. 

12. Sem embargo, não existem dúvidas acerca da intersecção entre o direito administrativo sancionador e o direito penal e se destaca, inclusive, a possibilidade de que uma mesma conduta amolde-se às duas disciplinas o que gera, por consequência natural, a aplicação subsidiária de institutos do direito criminal no âmbito do direito disciplinar, notadamente em razão de omissão legislativa na esfera administrativa.

13. Neste sentido, Nelson Hungria8, que compôs as Comissões responsáveis pela elaboração dos anteprojetos dos Códigos Penal, Processo Penal e da Lei das Contravenções Penais, pronunciou-se no sentido de que não há uma distinção ontológica entre um ilícito administrativo de um ilícito penal e, ainda, que a separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço, in litteris:

 

“A ilicitude é uma só, do mesmo modo que um só, na essência, é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas ‘sobre um mesmo plano, sobre um só mapa-mundi’. Assim, não há como falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. Conforme acentua BELING a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau, está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com a outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um discrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KUKULA justamente chama de ‘estéril especulação’, idêntica à demonstração da quadratura do círculo.” (grifei)

14. Nesta mesma esteira de entendimento, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari9 destacam que “na seara dos processos administrativos pertinentes à aplicação de sanções não deve o agente decisório deixar de levar em consideração a rica trama principiológica do direito penal”. Assim, cabe-lhes, em suma, “levantar as pontes conceituais antes por nós exaltadas, a fim de evitar que o processo realize não a justiça, mas a suma injustiça”.

15. Outrossim, Régis Fernandes de Oliveira10, citando Zanobini, ao expor sobre a aplicabilidade do direito penal no direito administrativo disciplinar, destaca que “as normas do direito penal são aplicáveis à responsabilidade às penas administrativas, enquanto podem ser reconduzidas a princípios jurídicos gerais e não constituem princípios especiais, justificados por razões políticas e jurídicas próprias do direito criminal”. Portanto, ambos os doutrinadores referendam a incidência de diversos preceitos do direito ao processo administrativo disciplinar e à sindicância.

16. O Tribunal de Contas da União, hoje, é uma referência idônea para por termo a eventual celeuma. Em Sessão Reservada, de 10.06.98, Ata nº 22/98 – Decisão nº 358/98, a Corte, referido-se a matéria disciplinar submetida à Corregedoria do órgão, decidiu:

...no caso de omissão da Lei nº 8.112/90 e de suas alterações, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de Contas da União, as disposições contidas nas normas do Poder Judiciário, em especial os Código Penal e de Processo Penal. (grifei)”

17. Diante dessa percepção e da constatação de que os princípios e institutos de direito penal, secularmente estudados e desenvolvidos, possuem simetria com o direito administrativo disciplinar deflui-se, da própria lógica jurídica que as condutas que são objeto de persecução na esfera administrativa poderão, ante a omissão legislativa administrativa, de forma subsidiária, por analogia e conforme avaliação do caso concreto, obedecer aos mesmos critérios do direito criminal, inclusive quanto à natureza jurídica das infrações e suas implicações pertinentes à contagem do prazo prescricional, como ocorre no caso de abandono de cargo.

II – DO ABANDONO DE CARGO: ELEMENTOS E NATUREZA JURÍDICA

18. O ilícito de abandono de cargo na esfera administrativa é definido pelo próprio estatuto de regência dos servidores públicos civis da União, nos termos de seu art. 138, como “a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos”.

19. Debruçando-se sobre o dispositivo supracitado, verifica-se a existência de dois elementos básicos para a caracterização da infração. O primeiro elemento, de ordem objetiva, diz respeito ao transcurso de prazo, que se traduz na ausência do agente público por um lapso temporal superior a 30 dias consecutivos. O outro elemento é subjetivo, leva em conta a intencionalidade da conduta do agente consistente na “ausência intencional”, denominado de animus abandoandi.

20. Desta forma, caberá ao Estado não apenas constatar (elemento objetivo) a ausência pelo prazo trintenário, mas, também, a intenção de se ausentar (elemento subjetivo), a qual pode ocorrer por dolo direto ou eventual, isto é, quando o servidor deseja ausentar-se ou, não desejando, assume o risco de produzir o mesmo resultado11, conforme firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

 

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROFESSOR DA REDE PÚBLICA ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL. DEMISSÃO POR ABANDONO DE CARGO. ANIMUS ABANDONANDI NÃO DEMONSTRADO. PEDIDO DE LICENÇA ANTERIORMENTE FORMULADO NÃO RESPONDIDO PELA ADMINISTRAÇÃO.

1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mostra-se pacífica quanto à necessidade de a Administração demonstrar a intenção, a vontade, a disposição, o animus específico do servidor público, em abandonar o cargo que ocupa.

2. A existência de prévio pedido de licença para acompanhar o cônjuge feito com mais de quatro meses de antecedência - não respondido pela administração - afasta a presença do animus abandonandi, requisito necessário à aplicação da pena de demissão por abandono de cargo.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 24.623, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, julgado em 27 de agosto de 2013)

21. Ante a necessidade de ambos os elementos para a caracterização do ilícito, tem-se que o abandono não se dará de forma automática, aferível meramente pelas faltas no controle de frequência do servidor, mas se mostra necessária a existência de intenção de se afastar do próprio cargo.

22. Impende salientar que, por óbvio, a demonstração da intencionalidade do servidor em abandonar o cargo não necessita ser de forma expressa, por meio de uma declaração com firma reconhecida em cartório, atestando que ele tem o “animus abandonandi”, mas deve ser configurada pelas circunstâncias do caso, notadamente por intermédio da apuração e constatação de posturas incompatíveis do servidor público com o dever de exercer o seu labor funcional.

23. Neste sentido, o próprio Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União12 orienta as comissões processantes a envidar esforços para apurar eventual existência de justificativas para a ausência do servidor, inquirindo-se, inclusive, o setor de recursos humanos para verificar se foi protocolizado pedido de afastamento por motivos justificáveis, o que pode configurar infração diversa, como inobservância do dever funcional de ser assíduo e pontual ao serviço (art. 116, X, Lei nº 8.112/90), pela inexistência de motivos para o afastamento enquanto o pedido era apreciado.

24. De outra ponta, durante esse iter processual, a intencionalidade do servidor pode ser ilidida por justificativa comprovada de que a falta ao serviço deu-se por justa causa, por força maior ou por situação que tornou insuperável a necessidade de se afastar de suas funções, sob pena de caracterização da infração do abandono de cargo, conforme firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in litteris:

“RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DELEGADO DA POLÍCIA CIVIL. DEMISSÃO POR ABANDONO DE CARGO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. ATO DEMISSÓRIO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. AUSÊNCIA DE ANIMUS ABANDONANDI DO SERVIDOR. FALTA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA.

1. Afasta-se a alegação de cerceamento de defesa e de nulidade do ato impetrado se assegurado, no processo administrativo que resultou na demissão do servidor, o direito à ampla defesa e ao contraditório, bem como se devidamente fundamentado o ato demissório.

2. O servidor que se ausenta voluntariamente do serviço por duzentos e seis dias consecutivos sem apresentar qualquer justificativa à Administração e sem comprovar a existência de motivos de força maior ou de coação ilegal que embasem a sua longa ausência deve ser demitido por abandono de cargo, nos termos do artigo 63 da Lei Estadual nº 10.261/68.

3. Recurso ordinário improvido. (RMS 19781, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, Julgado em 20 de Outubro de 2009.”

25. Neste cenário, resta incontroverso que o dolo (elemento subjetivo que demonstre a intencionalidade) do agente faz parte da base consumativa da infração de abandono. Não apenas isso, a vontade do agente incide diretamente, também, para a perduração da permanência da ilegalidade que poderá durar 1 dia, 30 dias, 1 ano ou 5 anos, de forma que, a exemplo do crime de sequestro, apesar de já estar configurada a infração, é o agente que delibera em se manter ou não na permanência do ilícito. 

26. Neste diapasão, observa-se que o fato de a infração consumar-se com o transcurso de período superior a 30 dias não implica dizer que o estado de permanência da situação de abandono seja mero efeito ou consequência da infração consumada. Ao contrário, se a configuração do abandono não se dá de forma objetiva e, ainda, se o servidor pode retornar ao serviço até que seja definitivamente demitido por meio de regular processo administrativo disciplinar, outra conclusão não há senão aquela de que a permanência depende diretamente da intencionalidade do agente.

27. Ademais, observa-se, por relevante, que permanecer ausente acarreta consequências jurídicas como o não recebimento de salários, contagem de tempo para promoção, aposentadoria, remoção, etc. Não só isso. Enquanto não demitido, por intermédio do regular procedimento sancionador, o servidor público goza formalmente dessa condição, podendo apresentar-se como tal, utilizar-se de dados e ter acesso a sistemas de uso exclusivo de agentes públicos.

28. Portanto, resta incontroverso que não apenas a vontade do agente incide diretamente para a configuração do abandono de cargo, mas, também, para a situação de permanência, fato este que acarreta consequências jurídicas e que nos conduz a concluir que se trata de prorrogação da base consumativa.

III – MOMENTO CONSUMATIVO E PRAZO PRESCRICIONAL

29. No tocante ao delito disciplinar do abandono de cargo, a importância de se estabelecer a sua base consumativa será a de definir o termo inicial da contagem do respectivo prazo prescricional.

30. Preliminarmente, cumpre esclarecer que os ilícitos tanto disciplinares quanto penais se classificam, basicamente, em instantâneos, permanentes, e instantâneos com efeitos permanentes.

31. Segundo Fabbrini Mirabete13, quanto à forma de ação, os crimes classificam-se em crimes instantâneos, permanentes e instantâneos de efeitos permanentes. Para ele, “crime instantâneo é aquele que, uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga”. Já o “crime permanente existe quando a consumação se prolonga no tempo, dependente da ação do sujeito ativo”. Para os crimes instantâneos com efeitos permanentes ocorrem quando “consumada a infração em dado momento, os efeitos permanecem, independente da vontade do sujeito ativo”.

32. Nesta mesma linha de raciocínio, Guilherme Nucci14 aduz que crimes instantâneos “são aqueles cuja consumação se dá com uma única conduta e não produzem um resultado prolongado no tempo. Assim, ainda que a ação possa ser arrastada no tempo, o resultado é sempre instantâneo”. Ainda para Nucci, crimes permanentes seriam “aqueles que se consumam com uma única conduta, embora a situação antijurídica gerada se prolongue no tempo até quando queira o agente. Exemplo disso são o sequestro e o cárcere privado”. Para ele crimes instantâneos com efeitos permanentes “nada mais são do que os delitos instantâneos que tem aparência de permanentes por causa do seu método de execução”.

33. Feita essa breve digressão a respeito dessas classes de delitos, releva agora discernir sobre a qual delas pertence o abandono de cargo disciplinar.

34. Conforme dito alhures, não apenas a vontade do agente incide diretamente para a configuração do abandono de cargo, mas, também, para a própria situação de permanência.

35. Debruçando-se sobre o ilícito administrativo do abandono de cargo em cotejo com a teoria do momento do crime, cuja aplicação é interdisciplinar, depreende-se que este ilícito apresenta um duplo grau, conforme salientado por José Armando da Costa15, onde se tem a existência de uma base pré-consumativa e outra pós-consumativa, que dependem da vontade do agente e que produzem efeitos jurídicos.

36. Ainda de acordo com o escólio do referido autor, tais bases projetivas se situam de modo muito preciso e objetivo na marca do trigésimo primeiro dia de falta injustificada ao serviço. A expressão que se situa antes dessa marca (de um a trinta dias) se define como pré-consumativa; já a que se coloca depois dela se denomina pós-consumativa. Enquanto esta dura indefinidamente a partir do trigésimo primeiro dia (plasmando a base consumativa que se projeta daí para frente), aquela requer uma duração de apenas trinta dias.

37. Conforme aqui já referenciado, a disponibilidade em poder do agente para prosseguir, ou não, em sua ação delituosa constitui exatamente o critério diferenciador entre o delito instantâneo de efeito permanente e o crime permanente. Neste, o prosseguimento fica absolutamente na esfera de vontade do agente que implementa a ação anômala; enquanto que naquele, uma vez consumado instantaneamente o delito, as suas consequências não ficam à mercê da vontade do autor.

38. Mais uma vez buscando a analogia ao Direito Penal, tem-se que, nas hipóteses de crimes de cárcere privado, sequestro e redução à condição análoga de escravo, todos os delitos inquestionavelmente tidos como permanentes, a ação criminosa se protrai no tempo disponível pelo autor. O mesmo já não ocorre em relação, por exemplo, ao crime de bigamia (art. 235 do CPB). Este, por ser instantâneo de efeito permanente, se consuma com o ato de celebração das segundas núpcias. Daí em diante, os seus efeitos projetam-se de modo alheio à vontade do agente.

39. Seguindo essa mesma lógica jurídica, na infração disciplinar do abandono de cargo, tanto a base pré-consumativa (trinta dias consecutivos de faltas ao serviço) quanto a pós-consumativa (do trigésimo primeiro dia em diante) estão no domínio de volição do agente público e acarretam, em ambas as situações, consequências jurídicas, conforme aqui já destacado. Diante disto, não se pode identificar tal delito como instantâneo de efeito permanente, pois, conforme já assinalado acima, inexistindo essa disponibilidade ao agente público (“ausência intencional...”), o abandono não se caracteriza, por mais que seja elevada a quantidade de faltas, bem como a sua situação de permanência, que produz efeitos jurídicos até que este voluntariamente decida retornar ao cargo ou que se ultime o procedimento disciplinar sancionatório pelo Estado.

40. Destarte, o fato do abandono de cargo possuir a natureza jurídica de infração de caráter permanente, o termo inicial do prazo prescricional, a exemplo dos ilícitos criminais, só se dará a partir do dia em que cessar a permanência.

41. A fim de espancar quaisquer questionamentos acerca da existência dessas classes quanto ao momento consumativo também nos ilícitos disciplinares, destaca-se a previsão expressa contida no Estatuto dos Servidores Públicos de Santa Catarina (Lei Estadual nº 6.745, de 28 de dezembro de 1985) que enquadra o abandono de cargo como infração de caráter permanente e, ainda, que o prazo inicial para a contagem do prazo prescricional só se inicia a partir “do dia em que cessar a permanência”, in verbis: 

Art. 137 - São infrações disciplinares, entre outras definidas nesta Lei:

[...]

II - puníveis com demissão simples:

[...]

2 - inassiduidade permanente;

3 - inassiduidade intermitente;

[...]

Parágrafo único - Considera-se inassiduidade permanente a ausência ao serviço, sem justa causa, por mais de 30 (trinta) dias consecutivos; e inassiduidade intermitente, a ausência ao serviço sem justa causa, por 60 (sessenta) dias, intercaladamente, num período de 12 (doze) meses.

(...)

Art. 150.  Prescreve a ação disciplinar:

I - em 02 (dois) anos, quanto aos fatos punidos com repreensão, suspensão, ou destituição de encargo de confiança;

II - em 05 (cinco) anos, quanto aos fatos punidos com a pena de demissão, de cassação de aposentadoria ou de cassação de disponibilidade, ressalvada a hipótese do art. 151, deste Estatuto.

§ 1º O prazo de prescrição começa a correr:

a) do dia em que o ilícito se tornou conhecido de autoridade competente para agir;

b) nos ilícitos permanentes ou continuados, do dia em que cessar a permanência ou a continuação.” (grifei)

42. Interpretando a legislação estadual supracitada em um caso de abandono de cargo por um servidor daquela unidade federativa, o Superior Tribunal de Justiça, em evolução aos seus precedentes, decidiu que a infração de abandono de cargo possui caráter permanente e que, em razão disso, o termo inicial do prazo prescricional se dá a partir do dia em que cessar a permanênciain verbis:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO. INASSIDUIDADE PERMANENTE. PRAZO PRESCRICIONAL. TERMO A QUO. CESSAÇÃO DA PERMANÊNCIA.

1. O Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de Santa Catarina (Lei 6.745⁄85) enquadrou, expressamente, a infração disciplinar perpetrada pelo recorrente como de caráter permanente e estabeleceu que o prazo prescricional da ação disciplinar em se tratando de ilícitos permanentes punidos com demissão é de 5 (cinco) anos, tendo como termo a quo o dia em que cessar a permanência.

2. No caso concreto, a inassiduidade do recorrente iniciou-se com o fim do período de licença para tratar de interesses particulares que lhe fora concedido pela Administração (19⁄12⁄2000) e permaneceu até o seu efetivo retorno ao trabalho em 20⁄6⁄2007, sendo este o marco inicial da contagem do prazo prescricional. Não há falar, portanto, em prescrição do Processo Administrativo Disciplinar, haja vista que a Portaria que determinou a sua instauração foi publicada em 31⁄12⁄2007, antes do decurso do prazo prescricional, devendo, por conseguinte, ser mantida a sanção aplicada.

3. Recurso ordinário não provido.” (RMS 44.169, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, unânime, DJe de 07/04/2014)

43. Outrossim, destaca-se o julgado mais recente daquela Corte Superior acerca do momento consumativo da infração de abandono de cargo, por intermédio do RMS 45.353 (DJe de 15/08/2015), que, apontando para a virada de sua jurisprudência, consignou a existência de entendimento anterior do Tribunal sobre o tema e que, por se tratar de ilícito permanente, o termo a quo do prazo prescricional da referida infração somente se inicia do dia em que cessa a permanência, conforme destacado no voto do Min. Relator Og Fernandes, da 2ª Turma, in verbis:

“A segunda questão, por sua vez, diz respeito ao decurso do prazo prescricional para instauração do PAD e consequente aplicação (ou não) da penalidade de demissão. Sobre o tema, prescreve a Lei Complementar Estadual n. 68⁄92:

Art. 179 - A ação disciplinar prescreve:

[...]

III - em 05 (cinco) anos, quanto aos fatos punidos com pena de demissão, de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, ressalvada a hipótese do artigo 174.

 

Portanto, deve a Administração Pública instaurar o competente processo administrativo disciplinar sumaríssimo no prazo de 5 (cinco) anos. A dúvida, não obstante, mostra-se presente em relação ao termo inicial da contagem do tempo para exercício desta pretensão. Este Superior Tribunal de Justiça já se posicionou sobre o tema e entendeu que, por se tratar de ilícito permanente, o termo a quo se inicia do dia em que cessa a permanência.” (grifei)

44. Diante do exposto, e com base nas razões de fato e de direito expostas no presente parecer, conclui-se que a infração funcional de abandono de cargo possui caráter permanente e o respectivo prazo prescricional apenas se inicia a partir da cessação da permanência.

IV - DA SUPERAÇÃO DO ENTENDIMENTO (OVERRULING) DOS PARECERES GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 E GQ - 214

45. Neste capítulo conclusivo da presente manifestação jurídica mostra-se imperativo ressaltar que o tema atinente ao termo inicial de prescrição da infração de abandono de cargo já havia sido outrora tratado, ainda na década de 90, pelos Pareceres GQ 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, todos aprovados pelo Presidente da República nos quais, à época, a questão sub lúmen serviu como base argumentativa para o deslinde dos casos concretos levados à apreciação do Chefe do Poder Executivo Federal.

46. Não obstante, mostra-se importante ressaltar que as soluções dadas para aqueles casos foram em consonância com entendimento vigente à época, de forma que se constituem em ato jurídico perfeito e indene à retroatividade por uma questão, sobretudo, do princípio constitucional da segurança jurídica16, como derivação do princípio do próprio Estado de Direito e expresso na própria Lei nº 9.784/99, sob dois aspectos fundamentais.

47. O primeiro aspecto do princípio da segurança jurídica, de ordem objetiva, aproxima-se, em grande medida, da regra constitucional que veda a retroatividade da lei, e versa sobre critérios de interpretação das normas administrativas, vedando objetivamente a aplicação retroativa de nova interpretação, in literris:

"Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

(...)

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...)

XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação."

48. Ainda por este prisma, anota a Professora Di Pietro17 que as leis, em razão do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ordinariamente, dispor para o futuro. Porém, não se ignora a possibilidade de mudança de orientação pela Administração Pública o que provoca, por consequência lógica, certa insegurança jurídica porque os interessados desconhecem o momento em que sua situação poderá ser contestada pela própria Administração Pública. Neste cenário, não se admite que os administrados tenham seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo, justificando-se aí a regra que veda a aplicação retroativa.

49. Nesta mesma senda, o Conselho Nacional de Justiça, já fixou o entendimento de que, ocorrendo nova interpretação administrativa, esta vinga para as situações que se consolidarem posteriormente, nos moldes da Lei 9.784/99, conforme espelhado no seguinte precedente, dentre outros, in verbis:

"No caso em questão, dúvida alguma há que está sendo dada nova interpretação  administrativa para o âmbito da Justiça do Trabalho, no bojo de processo administrativo, pelo que essa interpretação que agora se propõe deve gerar apenas efeitos para as futuras remoções, de molde a que os tribunais possam efetuar o correto planejamento orçamentário a fim de prever despesas de ajuda de custo nas remoções, de molde, pois entender o contrário implicaria em descumprir preceito legal (Lei 9784/99). Acredito, portanto, que é imperativo que esse Conselho reconheça que caso essa lei é norma de aplicação obrigatória, o que implica vedar qualquer efeito patrimonial nas remoções pretéritas..." (CNJ-PPs 200710000007809 e 200710000011825, Rel. Cons. Jorge Maurique, julgado em Sessão de 04/12/07)." (grifei)

50. Já o segundo aspecto evidencia o espectro subjetivo do instituto da segurança jurídica, qual seja, o princípio da proteção à confiança ou da confiança legítima e estabelece inovadoramente prazo decadencial de cinco anos para os atos administrativos ablativos de direito, salvo comprovada má-fé:

 

"Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé."

51. O citado dispositivo legal é imbuído do espírito de que, embora seja dever da Administração Pública rever seus próprios atos quando eivados de ilegalidade (autotutela),  conforme classicamente se reconhece, não raras vezes esta revisão, pode não ser realizada a tempo e modo, seja porque se desconhece a ilegalidade cometida, seja porque se julga legítima a interpretação do direito perpetrada na ocasião, de forma que se permite que situações fáticas irreversíveis ou reversíveis, porém a custos juridicamente intoleráveis, consolidem-se, tornado-se, pois, merecedores da salvaguarda do ordenamento jurídico18.

52. Neste ponto, tem-se que, se o referido dispositivo da Lei nº 9.784/99 reveste-se em segurança jurídica a favor do administrado verifica-se, também, na legislação ordinária, a existência de prazo prescricional quinquenal para o ex-servidor requerer a revisão de sua demissão. Isto é, o sistema jurídico apresenta-se em sua dualidade e aponta para a segurança jurídica para as relações como um todo.

53. Sobre este último enfoque, a desconstituição do ato administrativo de demissão, por se tratar de ato único de efeitos concretos, subordina-se ao lapso prescricional de cinco anos, na forma do artigo 1º do Decreto nº 20.910/32. Assim, caso não tenha sido exercitado o direito de ação dentro do prazo previsto em lei, a prescrição alcança o próprio fundo do direito. Neste sentido, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial, consolidou a exegese de que a ação que objetiva reintegração de servidor público deve ser proposta no prazo de cinco anos (artigo 1º do Decreto nº 20.910/32) do ato de demissão, ainda que se trate de ação ajuizada em face de ato nulo, in verbis:

"EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. REINTEGRAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO Nº 20.910/32.

1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que a ação que objetiva reintegração de servidor público deve ser proposta no prazo de cinco anos (artigo 1º do Decreto nº 20.910/32) do ato de demissão, ainda que se trate de ação ajuizada em face de ato nulo.

2. Agravo regimental improvido.(AgRg nos EREsp 545.538/SC, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, julgado em 28/10/2009, DJe 05/11/2009)"

54. Desta feita, e tendo-se como imperativo a superação do entendimento exposto nos retrocitados Pareceres Vinculantes, cumpre apontar, por derradeiro, os mecanismos hábeis para tal mister utilizando-se, para tanto, e de forma subsidiária, a novel sistemática de precedentes trazida pelo Novo Código de Processo Civil, nos termos do art. 15, in litteris:

 

"Art. 15.  Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente." (grifei)

 55. Abraçando a doutrina do stare decisis19 dos países de tradição de commom law, por meio da edição do Novo Código de Processo Civil, o Direito brasileiro percebeu a importância de se ter uma coerência e previsibilidade das decisões judiciais que são tão necessárias à própria estabilidade do Direito, de forma que não se pode admitir que situações juridicamente idênticas tenham um desfecho tão distinto dado pelos corpos decisórios.

56. Segundo o Professor Elpídio Donizetti20, o stare decisis, entendido como precedente de respeito obrigatório, corresponde à norma criada por uma decisão e que, em razão do status do órgão que a criou, deve ser obrigatoriamente respeitada pelos órgãos de grau inferior. Ainda de acordo com o autor, a existência desse precedente obrigatório pressupõe, a um só tempo, atividade constitutiva (de quem cria a norma) e atividade declaratória, destinada aos julgadores que tem o dever de seguir o precedente.

57. Não obstante, revela-se que essa procura de estabilidade sistêmica há muito inspira o Direito brasileiro, que buscava suprir a falta do stare decisis pela via normativa. Adotaram-se, sucessivamente, para tal tarefa, sucedâneos normativos ao stare decisis, a exemplo do controle abstrato de normas, ADIn interventiva, ADC, súmulas vinculantes, competência dada ao Senado para suspender em todo ou em parte parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário21 e, pela mesma lógica jurídica, os Pareceres Vinculantes aprovados pelo Presidente da República. Entretanto, seja pela via normativa ou pelos mecanismos de estabilidade do stare decisis, os entendimentos firmados não podem e nem devem possuir caráter absoluto e atemporal.

58. Voltando-se à sistemática do stare decisis, é imperioso ressaltar que a formação do precedente ocorre apenas pela razão de decidir do julgado, ou seja, pela sua ratio decidendi. Noutros termos, os fundamentos que sustentam os pilares de uma decisão é que podem ser invocados em julgamentos posteriores.

59. Neste diapasão, para que haja correta aplicação do precedente judicial ao caso concreto, competirá ao julgador a função de conferir se a demanda sob julgamento encontra similitude com o precedente, devendo-se analisar os elementos objetivos da demanda em comparação aos elementos caracterizadores dos casos antecedentes, por meio da utilização de técnicas de confronto, interpretação e aplicação (distinguishing) e de técnicas de superação (overruling e overriding), as quais merecem algumas considerações.

60. Quanto ao distinguishing, observa-se que se trata de um método de confronto “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”22. Assim, se não houver coincidência entre os fatos discutidos na demanda e a tese jurídica que subsidiou o precedente, ou, ainda, se houver alguma peculiaridade no caso que afaste a aplicação da ratio decidendi daquele precedente, o magistrado poderá ater-se à hipótese sub judice sem se vincular ao julgamento anterior.

61. Já o overruling é o procedimento por meio do qual um precedente perde sua força vinculante e é substituído por outra ratio decidendi. É técnica de superação do precedente e não apenas de aplicação, interpretação ou confronto de decisões judiciais. À semelhança da revogação de uma lei por outra, pode ocorrer de forma expressa (express overruling) ou tácita (implied overruling), conforme o órgão julgador manifeste expressamente seu interesse em adotar uma nova orientação, abandonando a anterior, ou adote posição contrária à previamente esposada sem, contudo, dispor diretamente a respeito23.

62. Esclarece-se, por pertinente, que a superação de um precedente justifica-se, à medida que a atividade interpretativa tende a se modificar ao longo dos anos. A constante evolução da sociedade e a necessidade de sistematização dos princípios, de modo a considerá-los em conexão com outras normas do ordenamento, são formas que possibilitam a mudança no sentido interpretativo nas normas. Assim, por mais que se almeje do sistema jurídico soluções com maior segurança jurídica, coerência, celeridade e isonomia, não há como fossilizar o teor das razões de decidir nas decisões prolatadas, no sentido de vincular eternamente a aplicação de determinado entendimento24.

63. Por tais razões é que a doutrina – amparada nas teorias norte-americanas – propõe a adoção de técnicas de superação dos precedentes judiciais. Neste espaço, conforme aqui já mencionado, tem-se o chamado overruling, técnica que se difere do distinguishing, à medida que este se caracteriza pela conformação do caso à ratio decidendi, enquanto aquele corresponde à revogação do entendimento paradigmático consubstanciado no precedente.

64. Ainda segundo o Professor Elpídio Donizetti, por intermédio dessa técnica (overruling) o precedente é revogado, superado, em razão da modificação dos valores sociais, dos conceitos jurídicos, da tecnologia ou mesmo em virtude de erro gerador de instabilidade em sua aplicação. Além de revogar o precedente, há que se construir uma nova posição jurídica para aquele contexto, a fim de que as situações geradas pela ausência ou insuficiência da norma não se repitam.

65. Por fim, quanto aos efeitos da nova ratio decidendi, o próprio CPC, em seu art. 927, elenca as regras para efeito temporal do precedente, superação e distinção.

66. Debruçando-se sobre o supracitado dispositivo legal, verifica-se que vige o entendimento de que a nova interpretação aplica-se aos casos em andamento, ou seja, às demandas pendentes de julgamento, valendo, portanto, a regra tempus regit actum. Por outro lado, aqueles casos que já tenham sido decididos sob a égide do entendimento anterior não deverão sofrer com a modificação do precedente, em respeito à imutabilidade da coisa julgada25 ou, in casu, e por analogia, do ato jurídico perfeito, conforme dispõe, inclusive, o já mencionado inciso XIII, do parágrafo único, do art. 2º, da Lei nº 9.784/99.

67. Esclarece-se, ainda, que como forma de evitar prejuízos em razão da mudança brusca de entendimento das cortes superiores e, assim, proporcionar ao jurisdicionado maior segurança jurídica no momento do exercício de seu direito constitucional de ação, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão, limitando sua retroatividade ou atribuindo-lhe efeitos prospectivos (art. 927, § 3º). Todavia, essa modulação vale para os processos que ainda estejam em andamento, não sendo possível falar-se em relativização da coisa julgada pela alteração de precedente judicial26 ou violação ao ato jurídico perfeito.

CONCLUSÃO

68. Ante o exposto, após análise das questões submetidas a exame, em atendimento à solicitação formulada, efetuam-se as seguintes conclusões:

a) as condutas que são objeto de persecução disciplinar na esfera administrativa poderão, ante a omissão legislativa administrativa, por analogia e conforme avaliação do caso concreto, obedecer aos mesmos critérios do direito criminal, inclusive quanto à natureza jurídica das infrações e suas implicações quanto ao termo inicial da contagem do prazo prescricional;

b) a vontade do agente incide diretamente não apenas para a configuração do abandono de cargo, mas também para a situação de permanência que produz efeitos jurídicos, restando caracterizada, portanto, a prorrogação de sua base consumativa;

c) a infração funcional de abandono de cargo possui caráter permanente e o prazo prescricional apenas se inicia a partir da cessação da permanência.

d) pela superação (overruling) das razões de decidir (ratio decidendi) sufragadas nos Pareceres GQ 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, com eficácia prospectiva, com base nas recentes decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, na doutrina e na legislação ordinária estadual.

À consideração superior.

Bruno Andrade Costa

Relator

Comissão Permanente de Procedimentos Administrativos Disciplinares – CPPAD/DECOR/CGU/AGU

_______________________

1 CARVALHO FILHO, José Santos. Manual de Direito Administrativo. Ed. Atlas, 25ª Ed., p. 981.

2 ob. cit., p. 982.

3 MEDAUAR, Odete. Controles Internos da Administração Pública. Revista da Faculdade de Direito, V. 84/85. São Paulo, p. 43.

4 CARVALHO FILHO, ob. cit., p. 72.

5 “Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”

6 “Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”.

7 “Art. 37.(...)§ 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

8 HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. InSeleção Histórica da RDA (Matérias Doutrinárias Publicadas em Números Antigos de 1 a 150), Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 15, 1945-1995.

9 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu, Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, 1. ed., 2. Tiragem. p. 154.

10 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 133.

11 Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/manual-pad.pdf

12 Disponível em: <http://www.cgu.gov.br>

13 MIRABETE, Julio Fabbrini; FRABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Parte Geral, 27ª ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2011, p.114.

14 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 6ª ed. São Paulo: Editora, p. 177-179.

15 COSTA, José Armando. Abandono de cargo público. Disponível em: http://www.sspds.ce.gov.br/file_bd?sql=FILE_DOWNLOAD_FIELD_ARQUIVO_DOWNLOAD&parametros=338&extFile=PDF

16 SILVA, Almiro do Couto e. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Brasileiro e o Direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n. 9.784/99), Revista Brasileira de Direito Público, ano 2, n. 6, Belo Horizonte, Fórum, jul./set. 2004. p. 7-59.

17 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. São Paulo: Editora Atlas, 2013, pp. 85 a 86.

18 Ferraz, Sérgio e Dallari, Adilson Abreu, Processo administrativo, 1ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, págs. 128/129 e 194.

19 stare decisis é o que sobrou da expressão latina ‘stare decisis et non quieta movere’; ao pé da letra: ‘que as coisas permaneçam firmes e imodificadas, em razão das decisões judiciais’ (PORTO, Sérgio Liberto. Sobre a commom law, civil law e o Precedente Judicial, in Estudo em homenagem ao Professor Egas Moniz de Aragão)

20 DONIZETTI, Elpídio. A Força dos Precedentes do Novo Código de Processo Civil. Disponível em: < https://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/155178268/a-forca-dos-precedentes-do-novo-codigo-de-processo-civil>

21 AMARAL JÚNIOR, José Levi de Mello. Controle de Constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis. Revista dos Tribunais, vol. 920, p. 133, Jun/2012.

22 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como Fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 174.

23 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 4. ed. Salvador: JusPodium, 2009, p. 395.

24 Idem.

25 DONIZETTI, Elpídio. Ob. cit.

26 Idem.

DESPACHO N. 486/GAB/CGU/AGU

PROCESSO: 00688.000880/2016-16

INTERESSADOS: PGFN E AGU

ASSUNTO: ABANDONO DE CARGO E TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL

DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ANALOGIA COM O DIREITO PENAL. ABANDONO DE CARGO. INFRAÇÃO DE NATUREZA PERMANENTE. TERMO INICIAL DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO.

- A infração de abandono de cargo é de caráter permanente, tendo como termo inicial do prazo prescricional o dia em   que cessar a permanência.

- Superação das razões de decidir dos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214.

Exmo. Sr. Consultor-Geral da União,

A Comissão Permanente de Procedimentos Administrativos Disciplinares (CPPAD/DECOR/CGU/AGU) desta Consultoria-Geral da União, reunida em Sessão Deliberativa Ordinária no dia 1º de dezembro de 2016, ao apreciar o Processo Administrativo n. 00688.000880/2016-16, aprovou, por unanimidade, o Parecer n. 01/2016/CPPAD/DECOR/CGU/AGU, de autoria do Procurador Federal Bruno Andrade Costa, o qual conclui, em síntese, que a infração disciplinar de abandono de cargo é de caráter permanente e que, dessa forma, o termo inicial do prazo prescricional deve ser o dia em que cessar a permanência.

Os principais fundamentos do parecer estão resumidos em sua ementa, da seguinte forma:

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. MATÉRIA DISCIPLINAR. ANALOGIA COM O DIREITO PENAL. ABANDONO DE CARGO. NATUREZA PERMANENTE. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. CESSAÇÃO DA PERMANÊNCIA.

I - As condutas que são objeto de persecução na esfera administrativa poderão, ante a omissão legislativa administrativa, por analogia e conforme avaliação do caso concreto, obedecer aos mesmos critérios do direito criminal, inclusive quanto a natureza jurídica das infrações e suas implicações quanto à contagem do prazo prescricional.

 

II - A vontade do agente incide diretamente não apenas para a configuração do abandono de cargo, mas também para a situação de permanência que produz efeitos jurídicos, restando caracterizada, portanto, a prorrogação de sua base consumativa.

 

III - A infração funcional de abandono de cargo possui caráter permanente e o prazo prescricional apenas se inicia a partir da cessação da permanência.

 

IV - Deve-se ter a superação (overruling) das razões de decidir (ratio decidendi) sufragadas nos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, com eficácia prospectiva, com base nas recentes decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, na doutrina e na legislação ordinária estadual.

O substrato fático das análises realizadas pela referida comissão está relacionado aos casos concretos nos quais o conhecimento da Administração a respeito da consumação da infração disciplinar de abandono de cargo ocorre quando já passados mais de 5 (cinco) anos desde o 31º (trigésimo primeiro) dia de ausência injustificada e ininterrupta do servidor público do local de exercício de suas funções1.

Nessas hipóteses, a Administração, amparada em entendimentos delineados nos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ – 214, pode proceder à exoneração de ofício do servidor ausente, apesar de que, tal como já consagrado em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, essa solução não encontre respaldo legal no rol estabelecido pelo art. 34 da Lei n. 8.112/1990. Solução alternativa, fundada em interpretações dos referidos pareceres realizadas por manifestações jurídicas desta Consultoria-Geral da União (Parecer nº 93/2011/DECOR/CGU/AGU e outros), permite que a Administração reconheça a prescrição da pena de demissão e determine o arquivamento de eventual processo administrativo disciplinar, assim como realize a notificação do servidor ausente para que retorne imediatamente às suas funções, com a consequência de que, ultrapassados 30 (trinta) dias contados da efetiva notificação, seja aberto outro processo administrativo disciplinar para apurar nova ocorrência da infração de abandono de cargo.

Portanto, o entendimento até então adotado pela Administração, com base nos referidos pareceres, é o de que a infração de abandono de cargo se consuma imediatamente com o advento do 31º (trigésimo primeiro) dia de ausência injustificada do servidor. Assim considerado como infração de caráter instantâneo – isto é, que se consuma de forma imediata e pontual no tempo –, o abandono de cargo, uma vez concretamente configurado, dá ensejo ao início da contagem do prazo prescricional para a atuação administrativa disciplinar. Transcorridos os 5 (cinco) anos do prazo legal2, considera-se como prescrita a pretensão punitiva da Administração.

Tal entendimento, como se pode perceber, poderia dar ensejo a situações extremamente indesejadas, como, hipoteticamente, a de servidor público que, ausente por mais de 5 (cinco) anos, uma vez formalmente notificado a respeito da extinção da pretensão punitiva e do consequente arquivamento do processo administrativo disciplinar, resolve retornar ao exercício de suas funções, sem que haja meios jurídicos idôneos para que a Administração o impeça de fazê-lo. Em hipótese extrema, pode-se vislumbrar o caso de servidor que, não podendo mais ser demitido, permanece no quadro do serviço público, sem exercício, mas com a percepção de vencimentos.

Em renovada abordagem da questão, o parecer da Comissão Permanente de Procedimentos Administrativos Disciplinares desta Consultoria-Geral da União opina pela superação desse entendimento amparado nos citados Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, passando a qualificar o abandono de cargo como infração de caráter permanente, em que o termo inicial do prazo prescricional, por analogia com os ilícitos criminais, somente poderá ocorrer a partir do dia em que cessar a permanência.

Utilizando a mais recente jurisprudência emanada do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, o parecer da Comissão também leva em conta a necessidade da presença concomitante do elemento objetivo (ausência injustificada por mais de trinta dias) e do elemento subjetivo (intenção do servidor de se afastar de suas funções) para a configuração da infração de abandono de cargo, considerando que, quanto a esse aspecto subjetivo ou volitivo, a vontade do agente incide diretamente não apenas para a caracterização do ilícito administrativo, mas também para a própria situação de permanência ilícita.

Assim, com fundamento na teoria do momento consumativo do crime ou da infração, o parecer entende que o ilícito administrativo de abandono de cargo apresenta uma dupla face ou um duplo grau, composto da seguinte forma: 1) a fase pré-consumativa, que ocorre do primeiro ao trigésimo dia de ausência injustificada do servidor; 2) a fase pós-consumativa, que ocorre a partir do trigésimo primeiro dia de ausência e dura indefinidamente, conformando a base consumativa da infração de caráter permanente. Ambas as fases, de todo modo, estão no domínio de volição do agente, estando o elemento subjetivo ou intencional presente, indefinidamente no tempo, em toda fase consumativa, de caráter permanente. Com isso, a conclusão não pode ser outra senão a de que o prazo de prescrição apenas pode ser iniciado com a cessação dessa permanência. 

Esse novo entendimento, além de representar uma interpretação coerente e consistente do sistema normativo dos artigos 138 e 142 da Lei n. 8.112/1990, permitirá à Administração atuar de modo mais eficaz no processamento administrativo disciplinar quanto à infração do abandono de cargo.

Tendo em vista que o entendimento até então vigente teve respaldo jurídico nos referidos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, a mudança do posicionamento jurídico da Administração faz incidir o princípio da segurança jurídica. Como se sabe, o princípio da segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, possui duas dimensões ou duas faces: a segurança jurídica em sentido objetivo, que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos estatais, administrativos ou legislativos e, nessa perspectiva, a proteção do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido; e a segurança jurídica em sentido subjetivo, que diz respeito à proteção à confiança legítima dos administrados em relação à atuação do Estado. Neste segundo sentido, portanto, a segurança jurídica pode ser traduzida como princípio da proteção à confiança, que visa estabilizar as expectativas dos indivíduos em torno dos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. Essa dimensão subjetiva da segurança jurídica impõe à Administração a proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium) e, com isso, a responsabilidade pelas alterações de seus próprios atos, tendo em vista a crença gerada nos administrados quanto à legalidade e legitimidade desses atos.

Nesse sentido, em respeito ao princípio da segurança jurídica e, portanto, no intuito de preservar incólumes todos os atos praticados sob a égide dos entendimentos delineados nos Pareceres GQ - 206, GQ - 207, GQ - 211 e GQ - 214, a adoção deste novo posicionamento quanto à natureza da infração de abandono de cargo e quanto ao início da contagem do respectivo prazo prescricional, tal como consignado no parecer da Comissão, deve ter efeitos apenas a partir da publicação oficial de despacho de aprovação do Presidente da República, momento desde o qual terá os efeitos necessários e suficientes para superar os citados pareceres e fixar o novo entendimento a ser seguido pela Administração Pública Federal3.

Ante o exposto, aprovo o Parecer n. 01/2016/CPPAD/DECOR/CGU/AGU, nos termos do DESPACHO n. 00016/2017/DECOR/CGU/AGU, deixando consignado que, em caso de acolhimento de suas conclusões, poderá ele ser submetido à aprovação do Exmo. Sr. Presidente da República, e uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, deverá vincular a Administração Pública Federal, cujos órgãos e entidades ficarão obrigados a lhe dar fiel cumprimento (artigos 40 e 41 da Lei Complementar n. 73/1993), a partir da data da sua publicação.

À consideração superior.

Brasília, 25 de julho de 2017.

 ANDRÉ RUFINO DO VALE

Consultor-Geral da União substituto

___________________

1 Lei 8.112/1990, Art. 138.  Configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos.

2 Lei 8.112/1990, Art. 142. A ação disciplinar prescreverá: I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão.

3 Esta é, inclusive, a determinação emanada da Lei 9.784/1999: Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

 

DESPACHO DO CONSULTOR-GERAL DA UNIÃO Nº 000487/2017

PROCESSO: 00688.000880/2016-16

INTERESSADOS: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Advocacia-Geral da União

ASSUNTO: Abandono de Cargo e Termo Inicial do Prazo Prescricional

Estou de acordo, com o PARECER nº 0001/2016/DECOR/CGU/AGU, nos termos do DESPACHO DO CONSULTOR-GERAL SUBSTITUTO n. 486/2017/GAB/CGU/AGU.

Submeto o presente caso a apreciação da Senhora Advogada-Geral da União com a sugestão de encaminhamento ao Excelentíssimo Presidente da República para aprovação.

Brasília, 25  de  julho  de 2017.

 

MARCELO AUGUSTO CARMO DE VASCONCELLOS
Consultor-Geral da União

Este texto não substitui o publicado no DOU de 21.9.2017