SECRETARIA-EXECUTIVA

EM n° 00024/2020 MMFDH MJSP

 

Brasília, 19 de Maio de 2020.

                    Senhor Presidente da República,


 

Submetemos à vossa apreciação o Projeto de Lei anexo, que tem como objetivo alterar o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, para estabelecer medidas contra o abuso sexual praticado por sacerdotes de todos os credos religiosos, profissionais de saúde, de ensino e qualquer outra pessoa que, valendo-se da confiança da vítima venha a praticar tais crimes e dá outras providências, em razão das motivações abaixo.

1.                O Brasil tem sido assolado nos últimos anos por uma onda devastadora de crimes de natureza sexual praticado por sacerdotes de todos os credos religiosos, profissionais de saúde, de ensino e por pessoas que aproveitam da confiança das vítimas e seus familiares.

2.                O emblemático e conhecido “Caso João de Deus” expôs para o país a necessidade de uma forte atuação na repressão de crimes de natureza sexual praticados, via de regra, com o abuso de confiança. Nesse caso, apenas no primeiro balanço [1] divulgado pelo Ministério Público do Estado de Goiás, foram identificadas 255 vítimas do médium, através de 596 contatos feitos pelo e-mail criado pela instituição especificamente para essa investigação. Destas 255 pessoas identificadas, 23 tinham entre 9 e 14 anos na ocasião dos fatos; 28 entre 15 a 18 anos, e 70, com idade de 19 a 67 anos.

3.                Sobre os relatos das vítimas, os promotores destacaram que o médium se valia da fé dos frequentadores da entidade por ele mantida, do respeito que elas tinham por ele; e da fragilidade das pessoas que, muitas, vezes estavam com graves doenças e buscavam, no auxílio espiritual, uma resposta para suas angústias. Relatam os Promotores de Justiça do Estado de Goiás que os crimes praticados pelo médium começaram a ocorrer nos idos de 1973.

4.                Cabe ressaltar que, diariamente o Brasil é surpreendido com notícias de crimes de abuso sexual e todos eles guardam a característica marcante do agressor valer-se da confiança da vítima e de sua família. De acordo com os dados encontrados nos canais da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos mantidos pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, os crimes de natureza sexual praticado contra mulheres e contra crianças e adolescentes estão, anualmente, em crescimento, situação que reclama uma atuação enérgica do Poder Público para a sua coerção. No ano de 2018, por exemplo, o Ligue 180 recebeu 92.663 denúncias de violações contra mulheres.

5.                Segundo a Childhood Brasil[3], apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes são notificados às autoridades. Tal estimativa é preocupante quando analisamos o volume de denúncias do Disque 100, canal oficial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que registrou entre os anos 2011 a 2019 (1º semestre), 200.316 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes.

6.                Inferir que as 200.316 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes (ocorridas nos últimos 07 anos e 06 meses) são apenas 10% dos casos e que na realidade ocorreram 2.003.160 de casos desse tipo de violação no Brasil é algo estarrecedor.

7.                Azevedo e Guerra (1994)[4] afirmam:

“ Os pais incestuosos, com raras exceções, são homens bem integrados socialmente e exibem uma fachada de respeitabilidade. Por isso mesmo é difícil enquadrá-los nas classificações psiquiátricas tradicionais. A estrutura psiquiátrica desses homens parece estar a meio caminho entre paranoia, a perversão e a psicopatia com clivagens significativas. Violência como forma de resolver conflitos, insensibilidade quanto aos interesses e preocupações dos outros e uma tendência a violar normas com um mínimo de sentimento de culpa são algumas das características mais frequentemente constatadas no perfil dos pais incestuosos. Por isso mesmo – e porque paradoxalmente muitas vezes seu discurso vai contra os próprios interesses – esses agressores tem sido denominados de escroques domésticos. Enquanto tal, a tomada de consciência da real gravidade de seus atos geralmente lhe é interditada, quase sempre por força da completa obliteração do traumatismo (físico ou sexual) por ele próprio sofrido na infância e/ou adolescência.”

8.                Apesar dos avanços alcançados pelas políticas públicas voltadas para as área da infância e adolescência, necessitamos estabelecer cada vez mais ações efetivas na prevenção e enfrentamento do abuso sexual. O fenômeno consiste em uma das mais graves violações de direitos humanos e está presente em todo o mundo, sendo suas causas ligadas, dentre outros fatores, a aspectos emocionais e culturais.

9.                Quando esse tipo de violência acontece no ambiente doméstico ou tem como agressor uma pessoa que desfruta da confiança da vítima e de sua família, o diagnóstico é de difícil constatação, principalmente devido ao muro de silêncio que se ergue nessas situações.

10.              Diante desse cenário, vislumbramos a importância do presente Projeto de Lei, que tem por objetivo aumentar a repressão aos crimes de natureza sexual. A sugestão é de alteração da parte final do Art. 115 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, elevando-se de 70 (setenta) para 80 (oitenta) anos a idade a ser considerada para redução do lapso prescricional, a fim de uniformizar o tratamento dispensado em outros elementos normativos, como por exemplo o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) e a exigência prevista no artigo 318. inciso I, do Código de Processo Penal para a colocação no regime domiciliar cautelar na hipótese de substituição da prisão preventiva.

11.              Referidos dispositivos, comparados à regra insculpida no Código Penal, são mais recentes e, portanto, compatibilizam-se com os atuais índices de expectativa de vida do brasileiro.

12.              Sendo assim, o aludido dispositivo passaria a ter a seguinte redação:

"Art. 115 São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos ou na data da sentença, maior de 80 (oitenta) anos ". (NR)

13.              O abuso sexual consiste num ato vil e cruel. Quando esse tipo de conduta criminosa é praticada por sacerdotes, profissionais de saúde, de ensino ou outras pessoas que se aproveitam da relação de confiança que possuem com a vítima, o delito precisa ser punido de forma mais severa. Tal premissa é verdadeira principalmente quando o abuso é praticado contra crianças e adolescentes, seres que ainda se encontram em desenvolvimento e portanto frágeis.

14.              Nesse espírito, sugerimos também o acréscimo no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal em seu Art. 226 do inciso V, que passaria a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 226 ...........................................................................................................................................

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V - de metade se o crime é praticado por sacerdotes de todos os credos religiosos, profissionais de saúde, de ensino e por qualquer outra pessoa que, valer-se da confiança da vítima ou de seus familiares.” (NR)

15.              Além disso, sugere-se o acréscimo ao Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal em seu Art. 201 os §7° e §8° que passaria a contar com a seguinte redação:

“Art. 201 ............................................................................................................................................

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§ 7º É assegurado ao ofendido tratamento digno no curso da investigação e em qualquer fase do processo, sendo dever da autoridade policial, servidores, do defensor, do membro de Ministério Público e do juiz tratar-lhe com respeito e urbanidade, abstendo-se de formular perguntas vexatórias, expô-la a constrangimento e proferir manifestações atentatórias à sua dignidade.

§ 8º Será facultada, mediante requerimento de qualquer das partes e decisão fundamentada do juiz, a tomada antecipada do depoimento do ofendido nos crimes contra a dignidade sexual, que deverá ser colhido na presença do magistrado, do membro do Ministério Público e do defensor do investigado.” (RN)

16.              O acréscimo do § 7º, Art. 201, CP, que versa sobre tratamento digno para a vítima no curso da investigação e em qualquer fase do processo, é importantíssimo, pois contribuirá para impedir a vitimização secundária de mulheres, crianças, adolescentes e outros grupos vulneráveis.

17.              De acordo com Valsani, Anna Gesteira Bäuerlein Lerche. Matosinhos, Izabella Drumond [5]

A vitimização secundária, que é a que interessa a este estudo, é a que envolve a vítima primária e o Estado, que exerce o poder punitivo e, assim, a persecução criminal. Além de ter sido atingida pelo crime, a vítima primária ainda terá que se recorrer ao Estado para que seja investigado, processado e julgado o autor do delito, significando que ela terá que se dirigir até a delegacia de polícia, se submeter a exame de corpo de delito, se assim o delito exigir, e ser ouvida novamente, em fase processual, perante um juiz, promotor de justiça e advogado.

18.              No caso específico do fenômeno do abuso sexual, o grau de traumatização pode ser agravado consideravelmente quando ocorrem falhas no atendimento interinstitucional e multidisciplinar, provocando a revitimização.

19.              Com relação ao acréscimo do § 8º, Art. 201, CP, que aborda a questão da tomada antecipada do depoimento de vítimas de crimes contra a dignidade sexual, esse é de fundamental relevância e encontra-se em sintonia com a Lei 13.431/17 que, em seu Art 11, § 1º, inciso I, trouxe inovações para a prática do ato processual de oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Art. 11. O depoimento especial reger-se-á por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.

§ 1º O depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação de prova:

II - em caso de violência sexual.

20.              Com efeito, a alteração legislativa proposta está em plena sintonia com a Constituição Federal e toma por empréstimo conceitos sedimentados no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre Direitos da Criança e seus protocolos adicionais, transformando-se em mais um instrumento de proteção dos que foram vítimas de abuso sexual.

21.              É importante ressaltar que, muitas vezes, o depoimento da vítima é a única fonte de prova, seja por ausência de testemunhas – nos casos em que a violência física ou sexual é intrafamiliar – ou ausência de vestígios – como em alguns crimes sexuais – ou ainda nos casos em que o exame pericial é inconclusivo, em razão do lapso temporal entre a agressão e sua realização. Assim, o depoimento da vítima torna-se instrumento essencial para a punição do agressor, mas que tem consequências diretas para a própria vítima.

22.              A finalidade da presente alteração legislativa consiste em melhorar o sistema penal punitivo para que os praticantes de tais crimes não sejam tão facilmente beneficiados por benesses legais e, principalmente, preservar o depoimento ou as declarações prestadas em sede administrativa ou em juízo como meio importante de prova, sem que signifique uma extensão dos danos já causados pela ação delituosa, prevendo-se diversos instrumentos de proteção, tais como o depoimento especial e a escuta especializada, como forma de evitar a revitimização (vitimização secundária) das vítimas.

23.              Por estas razões, submetemos a presente proposta de alteração legislativa à apreciação do Parlamento, na certeza de que, reconhecendo a conveniência e oportunidade, bem como a necessidade de sua implementação para aprimoramento da legislação penal, seja aprovado o presente Projeto de Lei.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

[1] Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/caso-joao-de-deus-pgj-e-promotores-apresentam-balanco-da-forca-tarefa#.XSSfXOhKhaQ >

[2] Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/agosto/balanco-anual-ligue-180-recebe-mais-de-92-mil-denuncias-de-violacoes-contra-mulheres>. Acesso em: 15 de mai. 2020

[3] Disponível em: <https://www.childhood.org.br/a-violencia-sexual-infantil-no-brasil>. Acesso em: 13 de fev. 2020

[4] AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.ª (2000). Telecurso de Especialização na Área da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. São Paulo.2000.

[5] Disponível em: <http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2018/05/20180094-Artigo-Depoimento-se-dano-e-as-inovacoes-trazidas-pela-lei-13431-2017.pdf. Acesso em: 09 de jul. 2019.


 

                   Respeitosamente,

 

Damares Regina Alves
Ministra de Estado da Família, da Mulher
e dos Direitos Humanos

André Luiz de Almeida Mendonça
Minstro de Estado da Justiça
e Segurança Pública