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Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

EMI No 58

Em 20 de novembro de 2003.

        Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

        O limiar do século XXI registra a irrupção, no espaço público e na agenda institucional do País, de um vigoroso debate acerca da oportunidade de implementar-se políticas públicas de promoção da igualdade racial, há anos pleiteada pelo movimento negro.

        Políticas positivas de reparação e igualação da cidadania passaram a ser objeto de tutela legislativa.

        O fenômeno ganhou relevância em 1995, quando as principais entidades e lideranças afrodescendentes assumiram explicitamente sua luta. Naquele ano, no dia 20 de novembro, a História registrou notável manifestação de rua: a "Marcha do Zumbi de Palmares, contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida", que reuniu cerca de trinta mil pessoas em Brasília para a entrega de documento pactuado entre as principais organizações e lideranças negras do País.

        Nele encontra-se gravado: "não basta, repetimos, a mera abstenção da prática discriminatória: impõe-se medidas eficazes de promoção da igualdade de oportunidade e respeito à diferença. (...) e adoção de políticas de promoção da igualdade."

        A Constituição vigente pronunciou-se a respeito nos preceitos assecuratórios que prevêem o tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, bem como no que assegura aos remanescentes destas comunidades a justa propriedade de suas terras. Tardia reparação a mais terrível injustiça perpetrada contra homens e mulheres que suportaram enormes sofrimentos para reconquistarem o direito à sua humanidade.

        Decorridos mais de cem anos da Proclamação da Liberdade entre os Homens no Brasil, encaminha a presente Exposição de Motivos o projeto de decreto que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal.

        Define a norma, em seu art. 2o e respectivos parágrafos, as "comunidades remanescentes dos quilombos", identidade étnica, histórica e socialmente construída, bem como conceitua territorialidade negra, ambas compreendidas sob a ótica antropológica que propõe nova avaliação semântica, de forma a atender aos desígnios e objetivos evidentes da Constituição.

        Confinados à invisibilidade jurídica, os quilombos alteavam a repressiva legislação colonialista e somente ganharam foros de legalidade um século após a abolição formal da escravatura, na Carta promulgada em 1988.

        Dispõe a ratio inscrita no art. 68 que ora se regulamenta, verbis:

"Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos."

        Consubstancia a legis o "direito à terra, enquanto suporte de residência e sustentabilidade, há muito almejadas, nas diversas unidades de agregação das famílias e núcleos populacionais, compostos majoritariamente, mas não exclusivamente, de afrodescendentes." (LEITE, Ilka Boaventura, In: Contribuição ao Debate sobre Regulamentação do artigo 68 do ADCT, Universidade Federal de Santa Catarina, NUER- Núcleo de Estudos sobre a Identidade e Relações Interétnicas, mimeog., p.1). Intentou a Lei Maior não apenas encarecer a importância essencial das ações afirmativas reparatórias. Quis, outrossim, resguardar as manifestações étnico-culturais dos grupos sociais participantes do processo civilizatório nacional, conforme se lê nos arts. 215 e 216 das disposições permanentes.

        A letra constitucional, contudo, ao dispor sobre a matéria, frustrou a legítima interpretação de sua palavra, por não lhe ter sido ofertada redefinição contemporânea do significado de quilombos, uma vez que "o processo de afirmação étnica não passa historicamente pelo resíduo, pela sobra, ou "pelo que foi e não é mais", senão pelo que de fato é, pelo que efetivamente é e é vivido como tal". (ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de, In: Quilombos: sematologia face a novas identidades, São Luís, SMDH/GCN, 1991, p.17).

        Neste contexto, a concretude da norma em seu processo de integração há de transcorrer da realidade vivencial do Estado para guardar conexidade com o sentido de conjunto e universalidade expresso na Constituição. Daí porque a direção interpretativa do art. 68 impõe a translação semântica da expressão "remanescentes das comunidades dos quilombos" para "comunidades remanescentes dos quilombos", inversão simbólica que os liberta dos marcos conceituais filipinos e manuelinos, contemplando-os com norma reparadora pelos danos acumulados. O quilombo e a territorialidade negra retratam a apropriação coletiva de grupos étnicos organizados e não a mera posse individual, certo que "a relação das comunidades negras com a terra se deu histórica e socialmente através do coletivo, não se circunscrevendo à esfera do direito privado. A terra coletivamente apropriada configura um bem público das comunidades negras, não sendo por oposição bem ou propriedade privada de seus membros" (BANDEIRA, Maria de Lourdes, In: Terras e Territórios Negros no Brasil, Textos e Debates. Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas, Ano 1, no 2, 1991, UFSC, p.8)

        Assim, não se enquadram, tais direitos, nas concepções jurídicas liberais. São direitos de comunidades, de grupos que possuem específicas regras de convivência, em relação às quais as normas de direito privado são estranhas e, por isso, impróprias para utilização neste caso.

        Desta perspectiva, infere-se que a expressão insculpida na letra jurídica – remanescentes das comunidades dos quilombos - frustra o sentido infenso à uniformidade interpretativa e conjura danos fatais às idéias e aos princípios da Carta Magna, se tomada em sua literalidade, mormente por se saber que o mais trágico legado da escravatura consistiu, precisamente, no asfixiamento da identidade étnica e na fragmentação da consciência coletiva negra diligenciados pelo Estado.

        A desintegração jurídica do estigma da escravidão faz sobrelevar a afirmação do Direito Étnico no formalismo positivista, realinhando o foco do superado conceito de raça para o plano da identidade. A partir deste avanço do legislador originário, o âmbito normativo do art. 68 transcende o texto e alcança a dimensão unitária dos valores que regem a Constituição quando oxigenam as práticas sócio-culturais negras em sua virtualidade política, como marca de distintividade.

        A extensão da liberdade de edificar concedida pela Lei Maior pressupõe a prevalência da mens legislatoris ou da mens legis, de forma que a dinâmica integradora não ultrapasse a autoridade definida. Ora, o alargamento crítico favor actus amplia o fim contemplado pela norma, intocável em sua materialidade, justificando a titulação coletiva pro indivisa, sem o caráter condominal previsto pelos arts. 1.314 e seguintes do Código Civil, e a incidência de cláusulas de ônus reais - inalienabilidade e impenhorabilidade – sobre aquelas terras, de forma a assegurar a perpetuidade da propriedade às gerações futuras e o patrimônio histórico-cultural brasileiro.

        Efetivamente, a definição jurídica de quilombos sempre enfatizou a ocupação coletiva e ilegal da terra. Isto se vê claro na resposta do Rei de Portugal à Consulta do Conselho Ultramarino, em 2 de dezembro de 1740, ao conceituar quilombo ou mocambo, como "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles".

        Posteriormente, com o recrudescimento do escravismo, a Lei no 236, de 20 de agosto de 1847, sancionada pelo Presidente da Província Joaquim Franco de Sá, diminuiria o número de escravos fugidos, sem, contudo, imprimir singularidade ao conceito. Leia-se:

"Art. 12- Reputa-se-ha escravo aquilombado, logo que esteja no interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de dois ou mais com casa ou rancho."

        A legislação republicana que se seguiu não contemplou qualquer redefinição de quilombos, formalmente extintos com a Abolição em 1888. Contudo, restaram elementos paradigmáticos presentes no projeto de decreto, tais como, a posse comunal e indivisível daquelas terras.

        De fundamental relevo, ademais, os critérios de identificação definidores do grupo, outorgados pelo art. 2o, § 1o, do projeto de decreto. Há de prevalecer, para fins de pertencimento, a consciência da identidade, nos termos da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil. Não quer isto significar a desnecessidade da realização de estudos técnicos, fundamentais para subsidiarem o Estado e as comunidades quilombolas. As pesquisas acadêmicas, nomeadamente as antropológicas, auxiliam a condução e o deslinde dos processos administrativos e judiciais, daí a previsão da elaboração de relatório técnico nos termos do art. 8o.

        No tocante à territorialidade negra, a noção de "território tradicionalmente ocupado" não guarda correlação com tempo imemorial; refere-se ao tradicional uso da terra segundo os costumes e tradições daquelas comunidades. A extensão teleológica da Carta Federal aponta para a superação civilista do conceito de posse agrária, indicando como caminho seguro a percorrer a interpretação analógica do art. 231 e respectivos parágrafos, vez que a proteção constitucional às coletividades indígenas e às comunidades remanescentes dos quilombos possuem idêntica equivalência valorativa no que concerne à afirmação dos direitos territoriais de grupos étnicos minoritários.

        No tocante à sobreposição das terras quilombolas em unidades de conservação constituídas, áreas de segurança nacional e faixa de fronteira, a gerar aparentes conflitos de interesses e direitos, todos tutelados pela Lei Suprema, fez-se constar nos arts. 10 e 11 do projeto de decreto, dispositivos que viabilizam a conciliação, em respeito à harmonia sistêmica da ordem constitucional. Por esta razão, a inserção das previsões normativas retromencionadas atende aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, porque prestigiam o meio ambiente, o patrimônio, a segurança e a soberania da Nação, sem olvidar as populações pré-colombianas.

        Prevê, ademais, o art. 13, a desapropriação por interesse social quando as comunidades ocuparem terras às quais a Lei de Registros Públicos outorga presunção juris tantum de domínio particular, garantido o contraditório, nos termos do art. 9º. Isto porque, se por um lado a propriedade privada não pode sobrepor-se à imperativa determinação constitucional que conferiu direitos territoriais àqueles grupos étnicos, por outro não previu a Constituição a anulação dos títulos individuais nem, tampouco, forma diferenciada de perda da propriedade, para além da prevista no art. 5o, XXIV.

        Neste sentido, a aplicabilidade dos preceitos máximos evoca a positividade, e não a neutralização, da eficácia de seus valores referenciais, pelo que mister o pagamento de prévia e justa indenização, quando couber, obedecidos os critérios fixados pela lei.

        Alfim, inova este ato normativo ao inserir, no art. 3o e respectivos parágrafos, o Instituto da Colonização e Reforma Agrária – INCRA no procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, competência até então atribuída à Fundação Cultural Palmares.

        Considerando a experiência do INCRA no tratamento das questões fundiárias, sua participação na regularização das terras dos quilombos é fundamental para dar operatividade ao dispositivo constitucional. Restaram asseguradas, contudo, as participações da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República para garantir os direitos étnicos e territoriais das comunidades quilombolas e do Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento, conforme se lê nos arts. 4o e 5o.

        Concluindo, titular as áreas remanescentes das comunidades dos quilombos, mais do que um compromisso moral da sociedade brasileira para reparar o horror da escravidão, constitui imperativo constitucional, que busca equiparar juridicamente segmentos populacionais, histórica e socialmente excluídos. Dispositivo inédito no sistema jurídico nacional, de caráter afirmativo e consagrador do Direito Étnico, o art. 68 do ADCT busca regularizar não só a questão fundiária das comunidades quilombolas, antes, expressa o reconhecimento da Nação brasileira aos quatro milhões de africanos escravizados e seus descendentes na edificação material, moral e cultural do País e o respeito à liberdade como o mais fundamental dos direitos.

Respeitosamente,

JOSÉ DIRCEU DE OLIVEIRA E SILVA
Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da
República
 

GILBERTO PASSOS GIL MOREIRA
Ministro de Estado da Cultura

 

MIGUEL SOLDATELLI ROSSETTO
Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário

 

MATILDE RIBEIRO
Secretária Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República