Presidência da República
Casa Civil
Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos

DESPACHO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

 Processo nº 00688.000125/2023-52 Parecer nº JM – 01, de 06 de abril de 2023, do Advogado-Geral da União, que adotou, nos termos estabelecidos no Despacho do Consultor-Geral da União nº 00290/2023/GAB/CGU/AGU, e do Despacho nº 00125/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, o Parecer nº 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU. APROVO.

Publique-se para os fins do disposto no art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

Em 10 de abril de 2023.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº:  00688.000125/2023-52

INTERESSADO: CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO

ASSUNTO: LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

PARECER Nº JM - 01

ADOTO, para os fins do art. 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, nos termos do Despacho do Consultor-Geral da União nº 00290/2023/GAB/CGU/AGU, e do Despacho nº 00125/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, datados de 06 de abril de 2023, o Parecer nº 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, de 24 de março de 2023, e submeto-o ao EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para os efeitos do art. 40, § 1º, da referida Lei Complementar, tendo em vista a relevância da matéria versada.

Brasília, data da assinatura eletrônica

JORGE RODRIGO ARAÚJO MESSIAS
Ministro Chefe da Advocacia-Geral da União

 

DESPACHO n. 00290/2023/GAB/CGU/AGU

NUP: 00688.000125/2023-52

INTERESSADOS: CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO

ASSUNTOS: DIVERSOS

Exmo. Senhor Advogado-Geral da União,

1. Aprovo, nos termos do DESPACHO n. 00125/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, o PARECER n. 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, do Advogado da União Antônio Marinho da Rocha Neto.

2. Nestes termos, submeto as manifestações desta Consultoria-Geral da União a vossa análise para que, em sendo acolhidas, sejam encaminhadas à elevada apreciação do Excelentíssimo Senhor Presidente da República para os fins dos art. 40, § 1º, e art. 41, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

Brasília, 06 de abril de 2023.

(assinado digitalmente)

ANDRÉ AUGUSTO DANTAS MOTTA AMARAL
Advogado da União
Consultor-Geral da União

 DESPACHO n. 00125/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU

NUP: 00688.000125/2023-52

INTERESSADOS: CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO

ASSUNTOS: DIVERSOS

Senhor Consultor-Geral da União,

1. Manifesto-me de acordo com o PARECER n. 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, da lavra do Advogado da União, Dr. Antonio Marinho da Rocha Neto.

2. Submeto o parecer à consideração superior.

 Brasília, 06 de abril de 2023.

Izabel Vinchon Nogueira de Andrade
Consultora da União

PARECER n. 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU 

NUP: 00688.000125/2023-52

INTERESSADA: CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO

ASSUNTO: LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

PARECER. CONSULTA. LICITAÇÕES. CONTRATOS ADMINISTRATIVO. PRÁTICA DE ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS. ATENTADO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA "MORALIDADE". ART. 37, CAPUT, DA CARTA DA REPÚBLICA. ARTS. 5º, 155, X; E 156, IV, TODOS DA LEI Nº 14.133/21. COMPORTAMENTO INIDÔNEO. PENALIDADE APLICÁVEL.  DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA  LICITAR OU CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. ART. 158, § 4º, DA LEI Nº 14.133/21. ART.47, "CAPUT" C/C INCISO VI DA LEI Nº 12.462/11. IMPEDIMENTO PARA LICITAR OU CONTRATAR. RESCISÃO CONTRATUAL. INTERESSE PÚBLICO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONTRADITÓRIO. AMPLA DEFESA. JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA. ART. 78, XII, DA LEI Nº 8.666/93. ART. 137, VIII, DA LEI Nº 14.133/21.

I - A prática de desenvolver, ou ainda, estimular ações atentatórias aos Poderes da República consubstancia violação ao Estado Democrático de Direito e ao princípio "republicano", recebendo alta carga de reprovabilidade do ordenamento jurídico pátrio.

II- A contratação administrativa de pessoas, físicas ou jurídicas, que praticaram ou instigaram atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito pode ser vista como incompatível com o princípio da "moralidade" estabelecido no art. 37, caput, da Constituição Federal, bem como com os princípios do "interesse público", da "segurança jurídica" e do "desenvolvimento sustentável", previstos no art. 5º da Lei nº 14.133/21.

III - A prática ou incitação de atos antidemocráticos pode ser interpretada como conduta passível de caracterização da conduta de "comportar-se de modo inidôneo", prevista no art. 155, inciso X, da Lei nº 14.133/21, como infração administrativa.

IV - Encampada a intelecção do item "III", as pessoas físicas ou jurídicas que praticaram ou estimularam atos antidemocráticos, quando figurarem como licitantes ou contratadas no regime jurídico estabelecido pela Lei nº 14.133/21, estarão sujeitas à responsabilização administrativa, mediante a aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar", prevista no inciso IV, do art. 156, da Nova Lei de Licitações.

V -  A aplicação da sanção de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" deve observar o prazo prescricional quinquenal estabelecido no § 4º, do art. 158, da Lei nº 14.133/21.

VI - A Administração Pública possui o prazo de 5 (cinco) anos, contados da ciência do fato, para instaurar o devido processo administrativo com o desiderato de apurá-lo.

VII -  A instauração do processo administrativo para a apuração do fato demarca a interrupção do lapso temporal prescricional quinquenal para a responsabilização do agente licitante ou contratado em razão da prática de infração administrativa, nos termos do art. 158, § 4º, da Lei nº 14.133/21.

VIII -  A aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" pressupõe a realização do devido processo legal, nos termos do disposto no art. 158 da Lei nº 14.133/21, com a devida oportunização ao interessado do exercício dos direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa"; e sobretudo, a efetiva comprovação do desenvolvimento da conduta ilícita pelo administrado.

IX - A aplicação da sanção de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" não exclui a obrigação das pessoas físicas ou jurídicas responsáveis de ressarcir a Administração Pública dos prejuízos sofridos em decorrência de atos antidemocráticos, nos termos dispostos no art. 156, § 9º, da Lei nº 14.133/21.

X - a prática ou instigação ao cometimento de atos antidemocráticos podem ser compreendidas como condutas passíveis de caracterizar a infração administrativa de "comportar-se de modo inidôneo", prevista no art. 47, inciso VI, da Lei nº 12.462/11, por parte do licitante submetido ao regime jurídico daquele diploma normativo.

XI - A conduta de "comportar-se de modo inidôneo" é sancionada com a penalidade de impedimento de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, nos termos do art. 47, caput c/c inciso VI, da Lei nº 12.462/11, desde que comprovada mediante devido processo legal administrativo, com "contraditório" e "ampla defesa".

XII - O prazo prescricional aplicável à pretensão de penalizar "comportamento inidôneo" desenvolvido pelo licitante submetido ao Regime Diferenciado de Contratações Administrativas é de cinco anos, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a conduta do agente.

XIII - É competente para aplicar a sanção de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública, prevista no art. 47, caput, da Lei nº 12.462/11, a autoridade responsável pela celebração do contrato ou outra prevista em regimento, a depender do caso concreto.

XIV - A aplicação da sanção de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública tem eficácia no âmbito do ente federativo em que foi aplicada e,  na esfera federal, enseja o registro da penalidade do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores - SICAF.

XV - O reconhecimento da prática ou a instigação à realização de atos antidemocráticos por parte do contratado é passível de caracterizar interesse público hábil a ensejar a rescisão do contrato administrativo, nos termos dos arts. 78, inciso XII, da Lei nº 8.666/93; e 137, inciso VIII, da Lei nº 14.133/21.

XVI -  A rescisão contratual administrativa mencionada no item "XV" somente pode ser efetuada mediante a constatação das seguintes condições: a) a realização do devido processo legal administrativo, com a devida observância dos direitos ao contraditório e à ampla defesa do administrado contratado; b) efetiva comprovação da prática ou do fomento de atos antidemocráticos por parte do contratado; c) decisão administrativa explicitamente justificada declinando as razões de interesse público a ensejar a rescisão administrativa; d) o respeito aos direitos porventura adquiridos em decorrência do contrato administrativo; e e) avaliação da proporcionalidade das consequências práticas possíveis da rescisão da avença para a Administração Pública. 

XVII - A restrição do direito de pessoas físicas ou jurídicas de participar de licitações ou contratações com a Administração Pública é medida de caráter excepcional em nosso ordenamento jurídico, porquanto a regra é justamente a ampla possibilidade de competição para negociar com o Estado.

XVIII -  A aplicação de medida ou sanção que venha a restringir ou impedir a participação de pessoas físicas ou jurídicas em licitações ou contratações públicas, caso não precedida da efetiva comprovação da conduta ilícita - no caso, a prática ou o incentivo à realização de atos antidemocráticos - poderá vir a configurar prática de desvio de finalidade.

XIX - É possível, em processo administrativo sancionatório, a utilização da prova emprestada, licitamente produzida, oriunda de processo judicial, desde que sejam resguardados os direitos substantivos ao "contraditório" e à "ampla defesa" do interessado.

XX - A atuação antidemocrática não se confunde com o regular exercício do direito à crítica decorrente do direito fundamental à "liberdade de expressão", consagrado no art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal.

1.                                          RELATÓRIO

1.                  Trata-se de consulta pessoalmente formulada pelo Senhor Consultor-Geral da União, o qual solicitou parecer abordando, em tese, a matéria alusiva às medidas sancionatórias aplicáveis, no âmbito das licitações e dos contratos administrativos, aos responsáveis pela prática material ou pelo incentivo ao cometimento dos atos antidemocráticos que escalaram a ponto de resultar nos atentados de 7/9/2022 e 12/12/2022, tendo seu ápice no ataque aos Poderes da República no dia 8/1/2023.

2.                  Destaca-se, por oportuno, que a consulta foi formulada em caráter geral e abstrato, sem abordar qualquer situação concreta ou específica de pessoa(s) determinada(s).

3.                  Desse modo, adianta-se desde já que o presente parecer abordará o tema, em tese, de forma geral, nos mesmos moldes em que a presente demanda foi dirigida a este órgão consultivo da Advocacia-Geral da União.

4.                  É o que importa relatar.

2.                  FUNDAMENTAÇÃO

5.                  Conforme tem sido amplamente noticiado pelos veículos nacionais - e até internacionais - de imprensa, desde a proclamação do resultado das últimas eleições presidenciais, uma sucessão de atos e manifestações organizadas ocorreu com o mote de impedir o curso normal da democracia brasileira, isto é, a posse e o desempenho do mandato do Presidente da República legitimamente eleito, nos termos em que reza a Constituição Federal de 1988.

6.                  Tais movimentos escalaram, gradativamente, da mera reunião de pessoas em torno do discurso antidemocrático à efetiva prática de atos materiais de violência ao Estado Democrático de Direito, sendo o ápice de tal processo o lamentável ataque aos prédios dos três Poderes da República Federativa do Brasil no dia 8/1/2023, os quais resultaram em inúmeros prejuízos ao patrimônio material e imaterial do povo brasileiro.

7.                  Diante de tal cenário, questionou-se a respeito da possibilidade jurídica de a União responsabilizar administrativamente as pessoas responsáveis pela prática ou pela instigação à realização de atos antidemocráticos, mediante a imposição de óbice a que venham a participar de licitações ou mesmo celebrar contratos administrativos.

8.                  Inicialmente, deve-se analisar o tema à luz da Constituição Federal, já que, porquanto norma fundamental  do ordenamento jurídico pátrio, esta deve nortear a interpretação e a aplicação de todas as demais que dela extraem o seu fundamento de validade.

9.                  Nessa ordem de ideias, tem-se já da leitura do art. 1º, caput, da Constituição Federal que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)".

10.              No parágrafo único do mesmo art. 1º, a Carta da República, ao mesmo tempo em que proclama o povo como titular do poder, prescreve que o seu exercício ocorre por meio de representantes eleitos, direta ou diretamente, na forma da Constituição: "Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

11.              Como bem pontua, em sede doutrinária, o Ministro Alexandre de Moraes[1]: "(...) O Estado Democrático de Direito significa que o Estado se rege por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo (...)" .  

12.              Marçal Justen Filho[2], por sua vez, sustenta que: 

O Estado Democrático de Direito caracteriza-se não apenas pela supremacia da Constituição, pela incidência do princípio da legalidade e pela universalidade de jurisdição, mas pelo respeito aos direitos fundamentais e pela supremacia da soberania popular. Também envolve reconhecimento da condição do cidadão como sujeito de direito, de que decorre o compromisso com a realização da dignidade humana e os direitos fundamentais, inclusive por meio de uma atuação estatal ativa e interventiva.

13.              No ponto, cabe afirmar que o Estado Democrático de Direito, justamente por consubstanciar elemento constitutivo da própria República Federativa do Brasil, nos termos dos próprios dizeres constitucionais, é bem jurídico de quilate extremamente elevado, sendo, portanto, profundamente caro ao Legislador Constituinte.

14.              Tanto é assim que o Texto Constitucional, em seu art. 5º, inciso XLIV, conferiu caráter imprescritível e inafiançável a atuação de grupos armados, civis ou militares, que atentem contra o Estado Democrático: "XLIV - (...) constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (...)".

15.              Por sua vez, o professor José Afonso da Silva bem conceitua o princípio "republicano", observando, com escólio nas lições de Ruy Barbosa, que a legitimidade popular conferida pelas eleições aos mandatários do Poder Executivo e Legislativo é aspecto determinante para a sua configuração:

O termo República tem sido empregado no sentido de forma de governo contraposta à monarquia. No entanto, no dispositivo em exame, ele significa mais do que isso. Talvez fosse melhor até considerar República e Monarquia não simples formas de governo, mas formas institucionais do Estado. Aqui ele se refere, sim, a uma determinada forma de governo, mas é, especialmente, designativo de uma coletividade política com características da res pública, no seu sentido originário de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo, que se opõe a toda forma de tirania, posto que, onde está o tirano, não só é viciosa a organização, como também se pode afirmar que não existe espécie alguma de República.

(...)

O princípio republicano não deve ser encarado do ponto de vista puramente formal, como algo que vale por sua oposição à forma monárquica. Ruy Barbosa já dizia que o que discrimina a forma republicana não é apenas a coexistência dos três poderes, indispensáveis em todos os governos constitucionais, mas, sim, a condição de que, sobre existirem os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os dois primeiros derivem, realmente, de eleições populares. Isso significa que a forma republicana implica a necessidade de legitimidade popular do Presidente da República, Governadores de Estado e Prefeitos Municipais (arts. 28, 29, I e II, e 77), a existência de assembleias e câmaras populares nas três órbitas de governos da República Federativa (arts. 27, 29, I, 44, 45 e 46), eleições periódicas por tempo limitado que se traduz na temporariedade dos mandatos eletivos (arts. cits) e, consequentemente, não vitaliciedade dos cargos políticos, a prestação de contas da Administração Pública (arts. 30, III, 31, 34, VII, d, 35, II, e 70 a 75) (...) (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. Pág. 104)

16.              Daí resultar a conclusão de que a atuação para impedir o regular funcionamento do ciclo democrático brasileiro é conduta ameaçadora ao próprio alicerce em que se funda o modelo de Estado erigido pela Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, consubstancia frontal agressão à Ordem Constitucional.

17.              Inclusive, o art. 23, inciso I, da Carta da República, estabeleceu a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de "zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público".

18.              Por outro lado, sabe-se que o princípio da "moralidade"  está consagrado no art. 37, caput, da Constituição Federal, como valor condicionante da atividade da Administração Pública: "(...) Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)".

19.              O princípio da "moralidade" impõe como norma a pautar a atuação do administrador o dever de obediência à honestidade e aos valores éticos, conforme ensina José dos Santos Carvalho Filho[3] (grifos nossos):

(...)

O princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto. Acrescentamos que tal forma de conduta deve existir não somente nas relações entre a Administração e os administrados em geral, como também internamente, ou seja, na relação entre a Administração e os agentes públicos que a integram.

O art. 37 da Constituição Federal também a ele se referiu expressamente, e pode-se dizer, sem receio de errar, que foi bem aceito no seio da coletividade, já sufocada pela obrigação de ter assistido aos desmandos de maus administradores, frequentemente na busca de seus próprios interesses ou de interesses inconfessáveis, relegando para último plano os preceitos morais de que não deveriam afastar-se.

O que pretendeu o Constituinte foi exatamente coibir essa imoralidade no âmbito da Administração. Pensamos, todavia, que somente quando os administradores estiverem realmente imbuídos de espírito público é que o princípio será efetivamente observado. Aliás, o princípio da moralidade está indissociavelmente ligado à noção do bom administrador, que não somente deve ser conhecedor da lei como dos princípios éticos regentes da função administrativa. (CARVALHO FILHO, José Dos Santos. Manual De Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. Pág. 22)

(...) 

20.              Ainda a respeito do mesmo tema, o Ministro Alexandre de Moraes[4], em sede doutrinária, pontua que:

(...) Pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (...).

21.              Por outro lado, o célebre Hely Lopes Meirelles[5] já destacava que o senso de zelo pelo adequado funcionamento da ordem institucional consubstancia aspecto inerente ao princípio da "moralidade", sendo pressuposto de legitimação da atividade administrativa estatal: 

O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com sua legalidade finalidade, além de sua adequação aos demais princípios, constituem pressupostos de validade sem os quais toda atividade pública será ilegítima. Já disse notável Jurista luso - António José Brandão - que " a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de dar a cada um o que lhe pertence - princípios de Direito Natural já lapidarmente formulados pelos jurisconsultos romanos. À luz dessas idéias, tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido por zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda. Em ambos os casos, os seus atos são infiéis à ideia que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre todas as funções, ou, embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do fim institucional, que é o de concorrer para o bem comum"(grifos nossos).

22.              Nesse diapasão, deve-se pontuar que, à luz dos valores éticos norteadores do princípio da "moralidade", estabelecido no o art. 37, caput, da Constituição Federal, resulta estranha a ideia de que o Estado brasileiro, através de sua administração, venha a celebrar ou manter contrato com as mesmas pessoas que atuam para a sua desconstrução.

23.              Com efeito, seria possível considerar como "moral" possibilitar que as mesmas pessoas que atentam contra as próprias bases fundantes do Estado Democrático de Direito brasileiro - buscando colapsar as instituições que marcam o status civilizatório democrático historicamente conquistado pela sociedade brasileira - livremente possam contratar com a Administração Pública, a qual foi constituída justamente com o objetivo de viabilizar o funcionamento do modelo estatal delineado pela Carta da República? 

24.              Poderia ser considerado "moral" que o lucro decorrente de contrato administrativo possibilitasse incrementar o mesmo patrimônio utilizado para o sustento ou o financiamento daqueles que perpetram condutas ilícitas contra o regime democrático que serve de pressuposto para a própria existência e finalidade de funcionamento da Administração Pública republicana?

25.              Indubitavelmente é negativa a resposta aos dois questionamentos acima.

26.              Desse modo, é possível concluir da leitura da própria Constituição Federal que, em razão da natureza da ofensa analisada, isto é, atentar contra o próprio Estado Democrático de Direito mediante o ataque aos seus Poderes constituídos, a Administração Pública possa - e até deva - utilizar mecanismos administrativos para, no âmbito de sua atuação, repreender tais condutas e afastar-se da celebração de contratos com os responsáveis pelos atos antidemocráticos.

27.              Evidentemente que tal atuação administrativa há de ser feita com o devido respeito aos princípios constitucionais do "devido processo legal", do "contraditório", da "ampla defesa" e da "temporariedade das penas", tendo em vista que qualquer atuação sancionatória estatal não pode se descuidar da oferta substantiva de tais franquias democraticamente conferidas pela Carta da República ao cidadão, em seu art. 5º, incisos XLVII, "b"; LIV e LV.

28.              Daí que tais premissas fornecidas pelo Texto Constitucional devem servir como farol a iluminar a leitura da legislação infraconstitucional, por força do mandamento hermenêutico da "Interpretação Conforme à Constituição".

29.              Aliás, a leitura da principiologia estabelecida no art. 5º, da Lei nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) reforça as conclusões extraídas do Texto Constitucional a respeito do tema em análise. 

30.              Dispõe o art. 5º, da Lei nº 14.133/21:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

31.              De fato, a par da subsunção da questão da "moralidade" administrativa acima delineada, não se percebe como a ideia de o Estado remunerar - pela via das contratações administrativas - executores e estimuladores de atos atentatórios à sua própria existência possa se coadunar com o princípio do "interesse público".

32.              Como justificar que observa o princípio da "segurança jurídica" a contratação - e a consequente remuneração com recursos estatais - de pessoas que subsidiam movimentos que atuam justamente na contramão de tal valor, buscando a derrubada das instituições democráticas que propiciam a estabilidade social e jurídica atualmente usufruída pela sociedade brasileira?

33.              Por outro lado, não se vislumbra alinhada ao princípio do "desenvolvimento sustentável" ​a contratação pela qual o Erário se obriga a remunerar quem atua materialmente para gerar o retrocesso institucional e a derrubada do edifício democrático do país, sobretudo tendo em vista que, no contexto da economia de mercado, a ruptura democrática, muito longe de acarretar qualquer avanço econômico, possui como real consequência o descrédito do mercado, bem como o receio e o desestímulo dos investidores de alocarem seus recursos na economia nacional.

34.              Isto posto, é sob a luz de tais pressupostos, decorrentes da Constituição e da própria principiologia estabelecida na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que se deve buscar empreender a leitura das disposições contidas neste diploma legal.

35.              De início, tem-se que, sob o ponto de vista estrito da habilitação exigida para licitar, a redação da Lei nº 14.133/21 não permite impor qualquer obstáculo a que pessoas, físicas ou jurídicas, que tenham praticado atos antidemocráticos - ou mesmo estimulado a sua realização - venham a participar de procedimentos licitatórios ou contratar com a Administração Pública.

36.              É que a Lei nº 14.133/21, ao iniciar o tratamento do tema da habilitação em seu art. 62, estabelece que esta se divide em : I) jurídica; II) técnica; III) fiscal, social e trabalhista e; IV)  econômico-financeira.

37.              Em seguida, os artigos 66 a 70 da Lei nº 14.133/21 estabelecem, de forma estrita, em que consiste cada uma das supracitadas espécies de habilitação, delimitando assim o que deve ser objeto de comprovação por parte dos contratantes:

Art. 65. As condições de habilitação serão definidas no edital.

§ 1º As empresas criadas no exercício financeiro da licitação deverão atender a todas as exigências da habilitação e ficarão autorizadas a substituir os demonstrativos contábeis pelo balanço de abertura.

§ 2º A habilitação poderá ser realizada por processo eletrônico de comunicação a distância, nos termos dispostos em regulamento.

Art. 66. A habilitação jurídica visa a demonstrar a capacidade de o licitante exercer direitos e assumir obrigações, e a documentação a ser apresentada por ele limita-se à comprovação de existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização para o exercício da atividade a ser contratada.

Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a:

I - apresentação de profissional, devidamente registrado no conselho profissional competente, quando for o caso, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação;

II - certidões ou atestados, regularmente emitidos pelo conselho profissional competente, quando for o caso, que demonstrem capacidade operacional na execução de serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior, bem como documentos comprobatórios emitidos na forma do § 3º do art. 88 desta Lei;

III - indicação do pessoal técnico, das instalações e do aparelhamento adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada membro da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;

IV - prova do atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso;

V - registro ou inscrição na entidade profissional competente, quando for o caso;

VI - declaração de que o licitante tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação.

(...)

Art. 68. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a verificação dos seguintes requisitos:

I - a inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ);

II - a inscrição no cadastro de contribuintes estadual e/ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;

III - a regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;

IV - a regularidade relativa à Seguridade Social e ao FGTS, que demonstre cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei;

V - a regularidade perante a Justiça do Trabalho;

VI - o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

§ 1º Os documentos referidos nos incisos do caput deste artigo poderão ser substituídos ou supridos, no todo ou em parte, por outros meios hábeis a comprovar a regularidade do licitante, inclusive por meio eletrônico.

§ 2º A comprovação de atendimento do disposto nos incisos III, IV e V do caput deste artigo deverá ser feita na forma da legislação específica.

Art. 69. A habilitação econômico-financeira visa a demonstrar a aptidão econômica do licitante para cumprir as obrigações decorrentes do futuro contrato, devendo ser comprovada de forma objetiva, por coeficientes e índices econômicos previstos no edital, devidamente justificados no processo licitatório, e será restrita à apresentação da seguinte documentação:

I - balanço patrimonial, demonstração de resultado de exercício e demais demonstrações contábeis dos 2 (dois) últimos exercícios sociais;

II - certidão negativa de feitos sobre falência expedida pelo distribuidor da sede do licitante.

(...)

Art. 70. A documentação referida neste Capítulo poderá ser:

I - apresentada em original, por cópia ou por qualquer outro meio expressamente admitido pela Administração;

II - substituída por registro cadastral emitido por órgão ou entidade pública, desde que previsto no edital e que o registro tenha sido feito em obediência ao disposto nesta Lei;

III - dispensada, total ou parcialmente, nas contratações para entrega imediata, nas contratações em valores inferiores a 1/4 (um quarto) do limite para dispensa de licitação para compras em geral e nas contratações de produto para pesquisa e desenvolvimento até o valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).        (Vide Decreto nº 10.922, de 2021)      (Vigência)

Parágrafo único. As empresas estrangeiras que não funcionem no País deverão apresentar documentos equivalentes, na forma de regulamento emitido pelo Poder Executivo federal.

38.              Vê-se, portanto, que, sob o prisma estrito da disciplina do instituto da habilitação, não há, de acordo com as disposições contidas na Lei nº 14.133/21, qualquer impedimento à participação em licitação ou contratação de pessoas, físicas ou jurídicas, que tenham realizado ou incentivado a prática de atos antidemocráticos, desde que preencham as condições estabelecidas para a demonstração de sua habilitação I) jurídica; II) técnica; III) fiscal, social e trabalhista e; IV) econômico-financeira.

39.              É dizer, em outras palavras, que assim como qualquer outro licitante ou contratante, a possibilidade de inabilitação de tais agentes não poderia decorrer pura e simplesmente da comprovação de sua atuação, direta ou indireta, para a realização de atos antidemocráticos, mas sim da efetiva ausência de comprovação da aptidão jurídica, técnica, fiscal, social, trabalhista ou econômico-financeira para contratar com a Administração Pública.

40.              Isto posto, caberia então enfrentar a questão à luz dos casos de impossibilidade de disputa de licitação ou de participação na execução, direta ou indireta, de contratos administrativos, os quais estão dispostos no art. 14 da Nova Lei de Licitações:

Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:

I - autor do anteprojeto, do projeto básico ou do projeto executivo, pessoa física ou jurídica, quando a licitação versar sobre obra, serviços ou fornecimento de bens a ele relacionados;

II - empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou do projeto executivo, ou empresa da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, controlador, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto, responsável técnico ou subcontratado, quando a licitação versar sobre obra, serviços ou fornecimento de bens a ela necessários;

III - pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta;

IV - aquele que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação;

V - empresas controladoras, controladas ou coligadas, nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, concorrendo entre si;

VI - pessoa física ou jurídica que, nos 5 (cinco) anos anteriores à divulgação do edital, tenha sido condenada judicialmente, com trânsito em julgado, por exploração de trabalho infantil, por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo ou por contratação de adolescentes nos casos vedados pela legislação trabalhista.

§ 1º O impedimento de que trata o inciso III do caput deste artigo será também aplicado ao licitante que atue em substituição a outra pessoa, física ou jurídica, com o intuito de burlar a efetividade da sanção a ela aplicada, inclusive a sua controladora, controlada ou coligada, desde que devidamente comprovado o ilícito ou a utilização fraudulenta da personalidade jurídica do licitante.

§ 2º A critério da Administração e exclusivamente a seu serviço, o autor dos projetos e a empresa a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo poderão participar no apoio das atividades de planejamento da contratação, de execução da licitação ou de gestão do contrato, desde que sob supervisão exclusiva de agentes públicos do órgão ou entidade.

§ 3º Equiparam-se aos autores do projeto as empresas integrantes do mesmo grupo econômico.

§ 4º O disposto neste artigo não impede a licitação ou a contratação de obra ou serviço que inclua como encargo do contratado a elaboração do projeto básico e do projeto executivo, nas contratações integradas, e do projeto executivo, nos demais regimes de execução.

§ 5º Em licitações e contratações realizadas no âmbito de projetos e programas parcialmente financiados por agência oficial de cooperação estrangeira ou por organismo financeiro internacional com recursos do financiamento ou da contrapartida nacional, não poderá participar pessoa física ou jurídica que integre o rol de pessoas sancionadas por essas entidades ou que seja declarada inidônea nos termos desta Lei.

41.              Como é possível perceber da leitura do supracitado art. 14, da Lei nº 14.133/21, não há o estabelecimento de hipótese literalmente taxativa e direta de impedimento de agentes que estimularam ou realizaram atos antidemocráticos para licitar ou contratar com a Administração Pública.

42.              Nessa toada, importa salientar que os incisos I, II e IV, do art. 14, da Nova Lei de Licitações, estabelecem hipóteses de impedimento baseadas na prevenção de eventual conflito de interesses na condução dos procedimentos de licitação e contratação realizados no âmbito da Administração Pública.

43.              Por sua vez, a hipótese de impedimento prevista no art. 14, inciso V, da Lei nº 14.133/21 busca preservar a competitividade do procedimento licitatório, de modo a impedir que empresas pertencentes ao mesmo grupo controlador concorram entre si.

44.              Por último, o inciso VI, do art. 14, da Lei nº 8.666/93 buscou preservar a responsabilidade social da contratação administrativa, ao impedir a contratação de pessoas físicas ou jurídicas "(...) que, nos 5 (cinco) anos anteriores à divulgação do edital, tenha sido condenada judicialmente, com trânsito em julgado, por exploração de trabalho infantil, por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo ou por contratação de adolescentes nos casos vedados pela legislação trabalhista (...)".

45.              Dessa maneira, percebe-se que nenhum dos suprareferidos incisos do art. 14 da Lei nº 14.133/21 poderia enquadrar os agentes com participação na realização dos atos antidemocráticos.

46.              Assim, à luz dos impedimentos estabelecidos no art. 14 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, somente caberia perquirir a respeito da possibilidade do enquadramento da atuação antidemocrática na hipótese de impedimento instituída no inciso III daquele artigo, isto é,  "pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta".

47.              Tendo em vista que a presente análise tem como ponto focal a atuação administrativa, caberia então analisar se haveria, no ordenamento jurídico pátrio, norma que gerasse sanção administrativa hábil a impedir os agentes antidemocráticos de participar de procedimentos licitatórios ou contratar com a Administração Pública, de modo a serem enquadrados no art. 14, inciso III, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

48.              Sabe-se que a Lei nº 14.133/21 estabelece, em seu art. 155, a tipificação de infrações passíveis de ensejar a responsabilização do licitante ou do contratado:

Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações:

I - dar causa à inexecução parcial do contrato;

II - dar causa à inexecução parcial do contrato que cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo;

III - dar causa à inexecução total do contrato;

IV - deixar de entregar a documentação exigida para o certame;

V - não manter a proposta, salvo em decorrência de fato superveniente devidamente justificado;

VI - não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta;

VII - ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;

VIII - apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato;

IX - fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato;

X - comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza;

XI - praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação;

XII - praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.

49.              Como bem explicam Fábio Mauro de Medeiros e Mônica Antinarelli[6], a Nova Lei de Licitações passou a ter um tratamento mais rigoroso em relação às infrações administrativas, estabelecendo um rol mais amplo de condutas ilícitas passíveis de sancionamento da Administração Pública, o que ocorre como uma espécie de "compensação" pela flexibilização do procedimento de contratação estabelecida naquela norma:

Tem-se na nova lei uma ampliação do rol de práticas do particular passíveis de serem punidas, em contraposição à legislação anterior (arts. 86, 87 e 88, da Lei nº 8.666/93), estabelecendo outrossim um regime punitivo mais rigoroso que o anterior, que se justificaria como forma de compensar uma desburocratização promovida pela nova lei no acesso aos processos de contratação pública. Além disso, o legislador atual demonstrou uma preocupação de tipificar de forma mais objetiva as condutas sujeitas à sanção. Todavia, ainda pairam críticas a respeito do grau de precisão das infrações administrativas, tendo em vista que persistem lacunas na definição de certas situações designadas por conceitos pouco determinados, como por exemplo comportar-se de modo inidôneo.

50.              Diante disto, cabe indagar: Poderia a atuação antidemocrática caracterizar infração administrativa à luz da Nova Lei de Licitações?

51.              caput do art. 155 da Lei nº 14.133/21 estabelece que "(...) O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações: (....)".

52.              Cumpre observar que a Nova Lei de Licitações passou a referir-se ao "licitante" e ao "contratado", diferentemente do que ocorre na Lei nº 8.666/93, que, ao tratar das infrações passíveis de sancionamento administrativo, somente faz referência à figura do "contrato", pelo que é possível concluir que, no regime desta anterior norma - ainda vigente -, a configuração da infração administrativa pressupõe a efetiva existência de contrato celebrado com a Administração:

Seção II

Das Sanções Administrativas

Art. 86.  O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.

§ 1º  A multa a que alude este artigo não impede que a Administração rescinda unilateralmente o contrato e aplique as outras sanções previstas nesta Lei.

§ 2º  A multa, aplicada após regular processo administrativo, será descontada da garantia do respectivo contratado.

§ 3º  Se a multa for de valor superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, a qual será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou ainda, quando for o caso, cobrada judicialmente.

Art. 87.  Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;

III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

§ 1º  Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.

§ 2º  As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis.

§ 3º  A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação.           (Vide art 109 inciso III)

Art. 88.  As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:

I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos;

II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação;

III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.

53.              Como bem destaca o insigne Ronny Charles Lopes Torres[7], ao comentar o regime estabelecido pelo art. 155, da Lei nº 14.133/21: "(...)  A leitura atenta do dispositivo demonstra uma pluralidade de atos ilícitos indicados como passíveis de sancionamento e a ampliação do sujeito passivo, que passa a abranger não apenas o contratado como também o licitante (...)". 

54.              Todavia, questão mais tormentosa consiste em saber, à luz do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 14.133/21 se, necessariamente, o sancionamento do licitante ou do contratado pressupõe que a infração administrativa tenha sido cometida no decorrer de procedimento licitatório ou de contrato administrativo.

55.              No ponto, cabe expor que, pelo menos em uma primeira análise, não se desconhece a perspectiva interpretativa no sentido de que a configuração das infrações administrativas previstas na Nova Lei de Licitações pressuporia um contexto de existência de procedimento licitatório ou de execução de contrato administrativo quando do momento da atuação ilícita.

56.              Sob essa ótica, poder-se-ia concluir que, nos termos do art. 155 da Lei nº 14.133/21, a responsabilização do "licitante" somente seria passível de ocorrer em relação aos atos praticados nessa condição. A  mesma lógica seria aplicável ao "contratado", que exclusivamente poderia ser responsabilizado pelas condutas desenvolvidas como tal.

57.              Contudo, deve-se salientar que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, porquanto ainda tão recente e com pouco de tempo de experimentação na prática administrativa, ainda não parece ter esgotado as possibilidades hermenêuticas sobre as novidades que trouxe em relação ao diploma anterior. 

58.              Tal conclusão, entende-se, ganha notório relevo no contexto da interpretação e aplicação do sistema de infrações e penalidades estabelecidas pela Lei nº 14.133/21, a qual, conforme já pontuado, valeu-se de uma técnica legislativa muito mais aberta, além de conferir um tratamento bem mais rigoroso ao tema do que operou a Lei nº 8.666/93.

59.              Assim, parece que a resolução do problema posto sob reflexão deve levar em conta a necessidade de construir, à luz do disposto na Constituição Federal, uma interpretação da recente Lei nº 14.133/21 que confira o adequado tratamento, no âmbito do enfrentamento administrativo do tema das licitações e contratações públicas, ao recente fenômeno social da prática dos atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito brasileiro.

60.              Sob tal perspectiva, deve-se reconhecer que a leitura do art. 155 da Lei nº 14.133/21 abre margem para o entendimento jurídico de que o licitante ou o contratado podem vir a ser responsabilizados administrativamente, no regime daquele diploma legal, por atos cometidos contra a Administração Pública, não necessariamente decorrentes de procedimento licitatório ou da execução de contrato administrativo.

61.              Conforme já exposto acima, a Lei nº 14.133/21, quando comparada com a Lei nº 8.666/93, ampliou o rol de sujeitos passíveis de responsabilização administrativa, uma vez que deixou de atrelar a configuração dos tipos infracionais estabelecidos à execução do contrato administrativo para prescrever, no caput do seu art. 155, que "(...) o licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações (...)".

62.              Note-se, que em nenhum momento, o supracitado caput do art. 155, da Lei nº 14.133, estabelece textualmente como requisito para a responsabilização do licitante e do contratado que a prática da infração cometida tenha se dado durante a realização de procedimento licitatório ou durante a execução contratual.

63.              Por outro lado, um apanhado histórico da legislação federal regulatória de licitações permite verificar que o legislador, quando da edição da Lei nº 10.520/02, em matéria de infrações administrativas, já havia inovado em relação à sistemática anteriormente estabelecida na Lei nº 8.666/93, prevendo a possibilidade de sancionamento também do licitante - e não somente do contratado. 

64.              De fato, o art. 7º da Lei nº 10.520/02 estabelece:

Art. 7º  Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4o desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.

65.              Note-se que o supracitado art. 7º, da Lei nº 10.520/02, ao referir-se à convocação dentro do prazo da proposta formulada em pregão, especifica em que momento e circunstância é possível ocorrer o cometimento das infrações administrativas tipificadas naquele dispositivo legal, ao revés do que ocorre com o caput do art. 155 da Lei nº 14.133/21, o qual tão somente fixa o poder-dever de responsabilização administrativa de licitantes e contratados em razão das condutas descritas, a seguir, nos seus incisos.

66.              Na realidade, a leitura atenta de todo o conteúdo do art. 155 da Lei nº 14.133/21 permite inferir que a delimitação do momento e circunstância da configuração das infrações administrativas estabelecidas, nos casos em que o legislador entendeu pertinente explicitar, consta da própria tipificação formulada pelo legislador em cada um dos incisos daquele artigo de lei.

67.              Assim, que por exemplo, os incisos I, II, III e VII, do art. 155, da Lei nº 14.133/21 tipificaram como infração administrativa, respectivamente, as condutas de "dar causa à inexecução parcial do contrato"; "dar causa à inexecução parcial do contrato que cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo"; "dar causa à inexecução total do contrato"; e "ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado"; deixando claro que tais infrações ocorrem na execução do contrato administrativo.

68.              Por sua vez, os incisos IV, V, VI, do mesmo art. 155, da Nova Lei de Licitações prevêem como infração administrativa as condutas de "deixar de entregar a documentação exigida para o certame"; "não manter a proposta, salvo em decorrência de fato superveniente devidamente justificado"; "não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta", indicando nitidamente que a configuração de tais infrações ocorre em momento pré-contratual.

69.              Os incisos VIII e IX estabelecem as infrações de "apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato"; e de  "fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato", apontando visivelmente que a consubstanciação de tais infrações pode ocorrer tanto no decorrer do procedimento licitatório como na fase contratual.

70.              Já o inciso XI, prevê a infração de "praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação" pelo que se entende, a princípio, que ocorreria na fase do procedimento licitatório. Contudo, em ulterior perspectiva, é possível vislumbrar a hipótese de, na fase contratual, serem realizados atos ilícitos com o propósito de fraudar licitação já realizada, de maneira que parece que a infração administrativa em questão pode ser cometida nas fases contratual e pré-contratual.

71.              Não obstante, chamam a atenção os tipos infracionais previstos nos incisos X e XII, do art. 155, da Lei nº 14.133/21, quais sejam, respectivamente, os de "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza"; bem como de " praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013".

72.              Atente-se para o fato de que os enunciados normativos destas infrações administrativas não contêm qualquer especificação de momento ou circunstância em que tais ações precisariam ser cometidas para efetivamente restarem configuradas enquanto atos ilícitos passíveis de sancionamento à luz da Lei nº 14.133/21.

73.              Aliás, chama a atenção o fato de, no mesmo artigo 155 da Lei nº 14.133/21, o inciso IX, estabelecer que constitui infração administrativa a conduta de "fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato" e, logo após, o inciso X do mesmo diploma normativo prever a infração administrativa de "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza".

74.              Por que razão teria o legislador, no inciso IX da Lei nº 14.133/21, tipificado como infração a fraude, explicitamente circunstanciada nos momentos da licitação e do contrato administrativo e, no inciso X  do mesmo artigo, repetido tal tipificação administrativa de forma mais vaga e genérica, estabelecendo ser infração administrativa "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza" ?

75.              No ponto, parece acertada a leitura doutrinária do inciso X do art. 155, da Lei nº 14.133/21 feita por Marçal Justen Filho[8], ao compreender que o comportamento fraudulento previsto naquele dispositivo refere-se a outras fraudes que não as cometidas na condição de contratado ou licitante, uma vez que estas já possuem previsão expressa no inciso IX do mesmo artigo de lei

(...)

A previsão da fraude em geral no mesmo dispositivo que se refere à inidoneidade não deve ser ignorada para fins hermenêuticos. Deve-se reputar que a fraude prevista no inciso X abrange condutas que, embora não referidas diretamente à atuação do sujeito na licitação ou na execução do contrato, apresentam reflexos sobre o relacionamento dele com a Administração.

(...)

76.              Ao que parece, quando o legislador desejou condicionar que a prática da conduta infracional ocorresse no contexto da realização de certame licitatório ou na execução de contrato administrativo, fê-lo explicitamente ao longo dos enunciados constantes dos incisos espraiados pelo art. 155 da Lei nº 14.133/21.

77.              Nesse quadrante, é possível empreender leitura da Nova Lei de Licitações que permita concluir que as infrações que podem ensejar a responsabilização do licitante ou do contratado não necessariamente devem ser praticadas sob tais condições para que possam restar configuradas. 

78.              Na realidade, o que efetivamente se extrai da leitura do caput, do art. 155, da Lei de Licitações é que a condição de licitante ou de contratado é pressuposto da responsabilização a ser efetivada em razão das infrações previstas naquele dispositivo normativo. Isto, todavia, não se confunde com o fenômeno da efetiva configuração do ilícito administrativo, o qual pode, a depender da previsão do tipo legal, ocorrer em contexto diverso das licitações e contratos administrativos.

79.              Veja-se, por exemplo, que os tipos administrativos previstos nos incisos X e XII, do art. 155, da Lei nº 14.133/21 - quais sejam, "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza"; e "praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013" - com a sua redação aberta, não estabelecem como requisito que as condutas neles previstas, para que possam consubstanciar infração administrativa, devam necessariamente ter sido desenvolvidas no decorrer de certame licitatório ou da execução de contrato administrativo.

80.              Por essa leitura, seria possível que uma pessoa, física ou jurídica, que tenha efetivamente praticado os tipos praticados nos incisos X e XII da Lei nº 14.133/21 e que, posteriormente, venha a se apresentar a Administração como licitante ou como contratado, seja responsabilizada administrativamente por tais condutas.

81.              Evidentemente que o sancionamento de tais condutas teria de observar a disciplina do art. 156, da Nova Lei de Licitações, que estabelece as penalidades correspondentes à prática das infrações administrativas descritas no art. 155 do mesmo diploma legal:

Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa;

III - impedimento de licitar e contratar;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.

§ 1º Na aplicação das sanções serão considerados:

I - a natureza e a gravidade da infração cometida;

II - as peculiaridades do caso concreto;

III - as circunstâncias agravantes ou atenuantes;

IV - os danos que dela provierem para a Administração Pública;

V - a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle.

§ 2º A sanção prevista no inciso I do caput deste artigo será aplicada exclusivamente pela infração administrativa prevista no inciso I do caput do art. 155 desta Lei, quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave.

§ 3º A sanção prevista no inciso II do caput deste artigo, calculada na forma do edital ou do contrato, não poderá ser inferior a 0,5% (cinco décimos por cento) nem superior a 30% (trinta por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta e será aplicada ao responsável por qualquer das infrações administrativas previstas no art. 155 desta Lei.

§ 4º A sanção prevista no inciso III do caput deste artigo será aplicada ao responsável pelas infrações administrativas previstas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do caput do art. 155 desta Lei, quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave, e impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta do ente federativo que tiver aplicado a sanção, pelo prazo máximo de 3 (três) anos.

§ 5º A sanção prevista no inciso IV do caput deste artigo será aplicada ao responsável pelas infrações administrativas previstas nos incisos VIII, IX, X, XI e XII do caput do art. 155 desta Lei, bem como pelas infrações administrativas previstas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do caput do referido artigo que justifiquem a imposição de penalidade mais grave que a sanção referida no § 4º deste artigo, e impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos e máximo de 6 (seis) anos.

§ 6º A sanção estabelecida no inciso IV do caput deste artigo será precedida de análise jurídica e observará as seguintes regras:

I - quando aplicada por órgão do Poder Executivo, será de competência exclusiva de ministro de Estado, de secretário estadual ou de secretário municipal e, quando aplicada por autarquia ou fundação, será de competência exclusiva da autoridade máxima da entidade;

II - quando aplicada por órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública no desempenho da função administrativa, será de competência exclusiva de autoridade de nível hierárquico equivalente às autoridades referidas no inciso I deste parágrafo, na forma de regulamento.

§ 7º As sanções previstas nos incisos I, III e IV do caput deste artigo poderão ser aplicadas cumulativamente com a prevista no inciso II do caput deste artigo.

§ 8º Se a multa aplicada e as indenizações cabíveis forem superiores ao valor de pagamento eventualmente devido pela Administração ao contratado, além da perda desse valor, a diferença será descontada da garantia prestada ou será cobrada judicialmente.

§ 9º A aplicação das sanções previstas no caput deste artigo não exclui, em hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à Administração Pública.

82.              Veja-se que, nos termos do art. 156, inciso IV, § 5º da Lei nº 14.133/21, as condutas descritas nos incisos X e XII do art. 155 daquele mesmo diploma normativo têm como sanção aplicável correspondente a "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar".

83.              Daí que uma interpretação possível da leitura combinada dos incisos X e XII do art. 155 da Lei nº 14.133/21 é a de que o legislador optou por considerar aqueles que se portaram de forma inidônea ou fraudulenta, ou ainda, que praticaram os atos de corrupção previstos na Lei nº 12.846/13, pessoas inidôneas para contratar com a Administração Pública.

84.              Nesse sentido, pode-se entender que a intenção da Lei nº 14.133/21, ao dispor de tal maneira, tenha sido justamente instituir mecanismo a fim de proteger a Administração Pública, de modo a prevenir que tais pessoas, que tenham comprovadamente atuado de maneira inidônea, corrupta ou fraudulenta, venham a ter condições de com ela celebrar contrato, seja pela via da participação em procedimentos licitatórios ou da contratação direta.

85.              É claro que, para tanto, faz-se necessário que o sancionamento da conduta praticada seja acompanhado da aplicação substancial das garantias do "contraditório", da "ampla defesa", do "devido processo legal" e "da temporariedade das penas", conforme previsto no art. 5º, incisos XLVII, "b"; LIV e LV, da Constituição Federal.

86.              Assim, o reconhecimento da prática de tais infrações administrativas pressupõe a realização do "devido processo legal" no âmbito administrativo, destacando-se a necessidade da oportunização ao administrado do "contraditório" e da "ampla defesa", nos termos previstos no art. 158, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos:

Art. 158. A aplicação das sanções previstas nos incisos III e IV do caput do art. 156 desta Lei requererá a instauração de processo de responsabilização, a ser conduzido por comissão composta de 2 (dois) ou mais servidores estáveis, que avaliará fatos e circunstâncias conhecidos e intimará o licitante ou o contratado para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contado da data de intimação, apresentar defesa escrita e especificar as provas que pretenda produzir.

§ 1º Em órgão ou entidade da Administração Pública cujo quadro funcional não seja formado de servidores estatutários, a comissão a que se refere o caput deste artigo será composta de 2 (dois) ou mais empregados públicos pertencentes aos seus quadros permanentes, preferencialmente com, no mínimo, 3 (três) anos de tempo de serviço no órgão ou entidade.

§ 2º Na hipótese de deferimento de pedido de produção de novas provas ou de juntada de provas julgadas indispensáveis pela comissão, o licitante ou o contratado poderá apresentar alegações finais no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contado da data da intimação.

§ 3º Serão indeferidas pela comissão, mediante decisão fundamentada, provas ilícitas, impertinentes, desnecessárias, protelatórias ou intempestivas.

§ 4º A prescrição ocorrerá em 5 (cinco) anos, contados da ciência da infração pela Administração, e será:

I - interrompida pela instauração do processo de responsabilização a que se refere o caput deste artigo;

II - suspensa pela celebração de acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013;

III - suspensa por decisão judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa.

87.              Por outro lado, em relação à competência para aplicação da referida sanção, deve ser observado o disposto no art. 156, § 6º, da Lei nº 14.133/21:

§ 6º A sanção estabelecida no inciso IV do caput deste artigo será precedida de análise jurídica e observará as seguintes regras:

I - quando aplicada por órgão do Poder Executivo, será de competência exclusiva de ministro de Estado, de secretário estadual ou de secretário municipal e, quando aplicada por autarquia ou fundação, será de competência exclusiva da autoridade máxima da entidade;

II - quando aplicada por órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública no desempenho da função administrativa, será de competência exclusiva de autoridade de nível hierárquico equivalente às autoridades referidas no inciso I deste parágrafo, na forma de regulamento.

88.              Analisando a questão sob a perspectiva do Poder Executivo Federal, a competência para a aplicação da referida sanção incumbe ao Ministro de Estado - nos casos de aplicação por órgão do Poder Executivo -, ou ainda, nos casos de aplicação por autarquia ou fundação, à autoridade máxima da entidade interessada.

89.              Ainda, em relação a aplicação da referida penalidade, é necessário frisar que a declaração de idoneidade não exclui a obrigação de reparar eventual dano causado à Administração Pública, conforme estabelecido no § 9º, do art. 156 da Lei nº 14.133/21: "§ 9º A aplicação das sanções previstas no caput deste artigo não exclui, em hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à Administração Pública".

90.              Por essa leitura, percebe-se, portanto, que as condutas previstas nos incisos X e XII do art. 155 da Lei nº 14.133/21 não necessariamente haveriam de ser perpetradas durante o procedimento licitatório ou na execução do contrato administrativo para que pudessem ensejar a responsabilização administrativa daqueles que as praticassem e, em dado momento, viessem a se apresentar perante a Administração Pública como licitantes ou contratadas.

91.              Estabelecidas tais premissas, caberia então perquirir sobre a possibilidade de responsabilização administrativa daqueles que praticaram ou fomentaram atos antidemocráticos, mediante o enquadramento nos tipos infracionais expostos no art. 155 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

92.              Dessa maneira, deve-se analisar em qual dos tipos dispostos no art. 155 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos poderia ser enquadrada a conduta antidemocrática que constitui o objeto de análise da presente manifestação jurídica.

93.              Como bem sintetiza Rafael Amorim de Amorim[9], as infrações estabelecidas pelo texto da Lei nº 14.133/21 estão categorizadas em três grupos distintos:

Nessa linha, as doze infrações constantes do art. 155 da NLLCA perpassam todo o ciclo da contratação pública, desde a fase preparatória da licitações, passando pela fase externa dos certames, até chegar a fase de execução contratual. Conforme o caso, podem ser aplicadas a licitantes e contratados, observada a seguinte ordem de classificação: (i) infrações que comprometem o êxito das licitações e o alcance dos seus respectivos objetivos (incisos IV, V, VI e XI); (ii) infrações que prejudicam a boa execução contratual (incisos I, II, III e VII); e (iii) infrações que colidem com bens e valores que normalmente transcendem licitações e contratos específicos (incisos VIII, IX, X e XII), observadas as peculiaridades do inciso XII, que remete ao art. 5º, da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) (grifos nossos)

94.              Como se sabe, a conduta de instigar ou praticar ato atentatório ao funcionamento das instituições democráticas, quando considerada em tese, não possui como objetivo lesar os bens jurídicos relativos ao êxito das contratações administrativas e à boa execução contratual.

95.              Então já seria possível eliminar a possibilidade de enquadramento legal no primeiro (infrações que comprometem o êxito das licitações e o alcance dos seus respectivos objetivos) e no segundo grupo (infrações que prejudicam a boa execução contratual) mencionados pelo autor.

96.              Portanto, de plano, já estariam descartados de aplicação ao caso em análise os incisos I, II, III, IV, V, VI, VII e XI do art. 155, da Lei nº 14.133/21.

97.              Caberia, pois, indagar se a atuação antidemocrática poderia ser enquadrada como infração colidente com "bens e valores que normalmente transcendem licitações e contratos específicos". Veja-se, a propósito, os comentários doutrinários de Rafael Amorim de Amorim a respeito dessa classe específica de infrações administrativas previstas no art. 155 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos:

Por último, o terceiro grupo contempla infrações que, apesar de estarem relacionadas às licitações  e contratos administrativos, revelam preocupações  com a proteção de outros bens e valores jurídicos relevantes. Nesse sentido, os tipos proibitivos vão além da simples tutela de uma contratação pública, demarcando a reprovabilidade de condutas que contrariam valores basilares do ordenamento jurídico, in casu, apresentar declaração ou documentação falsa (inciso VIII do art. 155); fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato (inciso IX do art. 155); comportar-se de modo inidôneo ou praticar fraude de qualquer natureza (inciso X); e, principalmente, praticar atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção. (FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021. Vol. 2. Belo Horizonte: Fórum, 2022. Pág. 468)

98.              Com efeito, na linha do que já foi exposto acima, a conduta de atuar para a derrubada dos Poderes constituídos pelo Estado Democrático de Direito implica violação frontal dos valores mais básicos da vigente ordem constitucional republicana, de maneira que o eventual enquadramento da conduta, caso venha a ser constatado como possível, somente poderia recair nesse terceiro grupo de infrações administrativas estabelecidas pelo art. 155 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

99.              Caberia, então, saber em qual das infrações desse grupo a atuação antidemocrática poderia ser enquadrada: Se no inciso VIII, IX, X, ou XII do art. 155, da Lei nº 14.133/21.

100.          De plano, percebe-se que a subsunção da conduta em análise às hipóteses estabelecidas nos incisos VIII ("apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato") e IX ("fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato") ​não seria possível, uma vez que não se trata de ação desenvolvida em contexto de licitação ou execução de contrato administrativo.

101.          Por outro lado, vê-se também que, a princípio, parece inviável o enquadramento das condutas analisadas no inciso XII, da Lei nº 14.133/21, em virtude da prática de atos previstos na Lei nº 12.846/13, a qual "dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências" e ficou popularmente conhecida como "Lei Anticorrupção".

102.          De fato, o caput, ​do art. 5º, da Lei nº 12.846/13, ao enunciar os atos sancionáveis pelo seu regime jurídico, vincula a possibilidade da responsabilização do agente à configuração de sua conduta aos tipos definidos nos incisos daquele artigo:

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º , que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

§ 1º Considera-se administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro.

§ 2º Para os efeitos desta Lei, equiparam-se à administração pública estrangeira as organizações públicas internacionais.

§ 3º Considera-se agente público estrangeiro, para os fins desta Lei, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública em órgãos, entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro, assim como em pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.

103.          Como é possível perceber do supratranscrito trecho do art. 5º da Lei nº 12.846/13, a conduta de incentivar ou praticar atos antidemocráticos, quando considerada de forma isolada e em tese, parece não poder ser subsumida a nenhuma das espécies tipificadas no rol de incisos daquele dispositivo legal.

104.          Sem embargo, cabe apenas ressalvar de tal raciocínio a cogitável possibilidade de ser constatada, em alguma situação concreta específica, a correlação da conduta antidemocrática com a prática material de um dos tipos previstos nos incisos do art. 5º da Lei Anticorrupção, hipótese em que seria aplicável o regime sancionatório desta norma e, consequentemente a infração prevista no inciso XII do art. 155 da Lei nº 14.133/21.

105.          Feita tal ressalva, somente restaria a possibilidade de enquadramento da conduta da prática ou de estímulo à realização de atos antidemocráticos no inciso X do art. 155 da Lei nº 14.133/21, o qual estabelece como infração administrativa "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza".

106.          No ponto, vê-se que, sob uma perspectiva mais geral, não seria possível vislumbrar o enquadramento como fraude da conduta antidemocrática, uma vez que para tanto seria necessário o elemento de dissimulação ou engodo a caracterizá-la como sendo fraudulenta.

107.          Como bem pontua Marçal Justen Filho[10]: "(...) não há fraude quando o sujeito não se vale de artimanhas ou dissimulações para obter resultado indevido (...)" .

108.          Todavia, não se pode deixar de considerar que, a depender das especificidades do caso concreto, é cogitável a caracterização da prática de atos antidemocráticos como "fraude de qualquer natureza", desde que a conduta perpetrada apresente traços de dissimulação ou engodo que autorizem juízo nesse sentido.

109.          Caberia então analisar se a ação de praticar ou incentivar a realização de atos antidemocráticos pode ser enquadrada como "comportamento inidôneo" para fins de caracterização da infração administrativa prevista no inciso X do art. 155 da Lei nº 14.133/21.

110.          No ponto, cabe transcrever as considerações doutrinárias de Marçal Justen Filho[11] acerca do conceito da prática de "comportamento inidôneo" para fins de enquadramento no art. 155, inciso X, da Lei nº 14.133/21:

(...)

29.1) Elemento material

A inidoneidade pressupõe um substrato material, consistente em conduta objetivamente incompatível com a ordem jurídica. Mas não basta qualquer ilicitude.

É necessário que a conduta apresente gravidade suficiente para fundar um juízo estimativo acerca da ausência de condições para contratar com a Administração Pública.

Esse juízo estimativo deve envolver dados objetivos, fundando-se na lógica  ou na experiência, em avaliações científicas ou técnicas.

Dito de outro modo, um pressuposto da configuração da conduta inidônea é a sua atuação contra a ordem jurídica. A antijuricidade é um requisito necessário, mas não suficiente para a configuração inidônea.

É necessário que a infração à ordem jurídica revele conduta suficientemente grave para fundamentar um juízo de que o sujeito não dispõe de técnicas ou éticas de manter qualquer contratação com a Administração. Ou seja, o juízo estimativo envolve uma reprovação ser severa da conduta do sujeito tanto quanto uma forma de proteção aos interesses coletivos em futuras contratações. Idoneidade significa inconfiabilidade.

29.2) A determinação por exclusão

Supõe-se que a conduta inidônea, apta a subsumir-se à formula legal, não se enquadra em nenhuma das outras previsões dos incisos do art. 155 da Lei 14.133/2021. Trata-se, portanto, de algum comportamento que conjugue dois elementos fundamentais e indispensáveis.

Por um lado, a atuação do sujeito deve caracterizar-se como antijurídica, em face de algum dispositivo legal ou contratual. Não é possível remeter a algum juízo opinativo, fundado em preferências subjetivas ou processos psicológicos irracionais do administrador.

Por outro lado, a infração deve refletir a incompatibilidade da atuação do sujeito com a manutenção do relacionamento jurídico com a Administração.

O sujeito sancionado com a inidoneidade é reputado como destituído dos requisitos de confiabilidade para estabelecer para estabelecer um relacionamento contratual com a Administração Pública.

(...)

111.          Vê-se, portanto, que o comportamento inidôneo referido pelo art. 155, inciso X, da Lei nº 14.133/21 é a conduta jurídica dotada de tamanho grau de reprovabilidade a ponto de gerar para a Administração Pública a necessidade do afastamento de seu agente em prol da melhor proteção possível dos interesses coletivos.

112.          Assim, entende-se que para a configuração do comportamento inidôneo aludido no inciso X do art. 155 da Lei nº 14.133/21 faz-se necessária a presença conjugada de dois elementos: a) a atuação antijurídica do agente; e b) o elevado grau de reprovabilidade da conduta a ponto de inviabilizar o relacionamento jurídico com a Administração Publica.

113.          No caso em tela, os dois elementos em análise se mostram presentes na conduta de quem deliberadamente pratica ou instiga a prática de atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito.

114.          Na linha do que já foi exposto, a conduta em análise, sem dúvida, é antijurídica, já que é frontalmente contrária ao disposto na Constituição.

115.          Por outro lado, é indubitável que tal atuação é de enorme grau de reprovabilidade, uma vez que, conforme já explicitado acima, a finalidade para a qual é dirigida consiste justamente em atentar contra o Estado Democrático de Direito que alicerça toda a Ordem Jurídica estabelecida pela Carta da República de 1988.

116.          Nesse sentido, não é admissível, sob a ótica da "moralidade" administrativa, que a Administração Pública venha a manter uma relação contratual e remunerar aqueles que atentam contra o Estado Democrático de Direito cuja implementação consiste justamente na sua razão de existir e funcionar.

117.          Nesse quadrante, deve-se reiterar que tal contratação, caso viesse a se concretizar sem que fosse precedida de qualquer sanção do administrado, configuraria situação jurídica incompatível com o  suprareferido princípio administrativo estabelecido no art. 37, caput, ​da Constituição Federal.

118.          Igualmente, e também reverberando o que já foi anteriormente exposto, a ideia de que a Administração Pública possa contratar com quem age para a derrubada do Estado Democrático de Direito também é de todo incompatível com os princípios do "interesse público", da "segurança jurídica" e do "desenvolvimento sustentável".

119.          Sob a luz de tais premissas, resulta forçosa a conclusão de que a conduta de atuar proativamente para a ruína do Estado Democrático de Direito é de tamanha gravidade, que torna o seu agente, à luz da principiologia vigente na Constituição Federal e na própria Lei nº 14.133/21, alguém inidôneo para manter relação contratual com o Estado por este alvejado.

120.          Logo, a conduta de atentar contra o Estado Democrático, seja pela via da direta execução de atos materiais, seja através do fomento de ações em tal sentido, poderia ensejar, sob a ótica da leitura jurídica aqui empreendida, a caracterização da infração administrativa de "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza", previsto no art. 155, inciso X, da Lei nº 14.133/21.

121.          Por conseguinte, de acordo com tal leitura jurídica, caso viessem a figurar como licitantes ou contratados, os agentes antidemocráticos estariam sujeitos à responsabilização por sua atuação ilícita desenvolvida contra o Estado, mediante a aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar", prevista no art. 156, inciso IV, da Lei nº 14.133/21.

122.          Para tanto, seria necessário que a referida atuação antidemocrática fosse devidamente comprovada no contexto da realização do devido processo legal administrativo, conforme exigido pelo art. 158, da Lei nº 14.133/21, em que houvesse a devida oportunização ao exercício do "contraditório" e da "ampla defesa", nos termos previstos pelo art. 5º, incisos LIV e LV, da Carta da República.

123.          Saliente-se, por oportuno, que a aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" pressupõe ato emanado da autoridade administrativa competente nesse sentido, a qual é determinada de acordo com as regras estabelecidas no § 6º do art. 156 da Lei nº 14.133/21.

124.          De acordo com o referido dispositivo legal, no âmbito do Poder Executivo da União, a competência para aplicação de tal penalidade é do Ministro de Estado, no caso de ser aplicada no âmbito de órgão Federal; ou do dirigente máximo da entidade, quando isto ocorrer em autarquia ou fundação.

125.          Deve-se pontuar também que, nos termos do art. 156, § 9º, da Lei nº 14.133/21, a aplicação da declaração de inidoneidade para contratar ou licitar não exclui, em hipótese alguma, a necessidade de reparar o dano sofrido pela Administração, de maneira que, nos casos de decisão pela referida penalidade administrativa, persistiria a obrigação de ressarcimento aos prejuízos gerados ao Patrimônio Público em decorrência da atuação dos autores e incentivadores de atos antidemocráticos.

126.          Por oportuno, é necessário que a aplicação da penalidade em comento seja regida pela observância do prazo prescricional estabelecido no § 4º do art. 158 da Lei nº 14.133/21:

(...)

§ 4º A prescrição ocorrerá em 5 (cinco) anos, contados da ciência da infração pela Administração, e será:

I - interrompida pela instauração do processo de responsabilização a que se refere o caput deste artigo;

II - suspensa pela celebração de acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013;

III - suspensa por decisão judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa.

(...)

127.          Como bem explica Fábio Mauro de Medeiros[12]:

(...)

Por fim, o legislador acabou adotando, como critério temporal de aplicação de sanções, prazo prescricional similar ao previsto para a ação disciplinar em relação aos próprios servidores públicos, em redação similar ao do art. 142, I e § 1º, da Lei 8.112/93. Assim, ao contrário das hipóteses de direito penal em que a prescrição se conta do fato, a nova lei inicia o prazo prescricional do conhecimento da infração. O prazo para aplicação da sanção será de 5 anos, passados os quais ocorrerá a prescrição do direito de punir no contrato ou na licitação. Há previsão de fatores que ampliam o prazo apuratório: suspensão e interrupção.

Na hipótese de interrupção, o prazo volta ao início e há mais 5 anos para a apuração e aplicação da penalidade quando da abertura do processo administrativo apuratório. O prazo é passível de suspensão, ou seja, não se contam os períodos em que houve acordo de leniência até a constatação dos descumprimentos das obrigações ali indicadas até a constatação dos descumprimentos das obrigações ali indicadas e nem o período em que esteja vigente liminar ou tutela judicial até decisão em contrário. 

(...)

128.          De acordo com o supracitado dispositivo normativo, é possível concluir que a Administração Pública possui o prazo de 5 (cinco) anos contados da ciência da infração para instaurar o devido processo administrativo para a apuração do fato, marco este que demarca a interrupção do referido lapso temporal, nos termos do citado art. 158, § 4º, da Lei nº 14.133/21.

129.          Consequentemente, após a instauração do competente processo administrativo sancionatório, o referido prazo prescricional quinquenal tornará a fluir do seu início, de maneira que a Administração pública possuirá mais cinco anos a partir de então para concluir o referido feito e, se for o caso, aplicar a penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" com a Administração Pública.

130.          Outrossim, em caso de prolação de decisão judicial determinando a suspensão do trâmite do processo administrativo apuratório, o prazo prescricional fica suspenso durante o período de vigência da referida medida liminar, retornando a fluir, quando do momento da cessação da medida, do ponto em que parou.

131.          Quanto à duração e extensão da sanção de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, tem-se que esta impedirá o sancionado de contratar ou licitar no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos e máximo de 6 (seis) anos, nos termos do § 5º, do art. 156, da Lei nº 14.133/21.

132.          Já em relação à eficácia da medida, cabe ressaltar, na linha das lições doutrinárias de Ronny Charles Lopes de Torres[13], que: "(...) Não há efeito rescisório, nesta sanção, mas apenas restritivo (impeditivo). Outrossim costumou-se definir que a aplicação desta sanção apenas produz efeito para o futuro (ex nunc), sem interferir nas contratações já firmadas (...)".

133.          Na realidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já possui entendimento de que a sanção de "declaração de inidoneidade" não implica a rescisão dos contratos já firmados anteriormente à sua aplicação. Todavia, a mesma Corte admite que tal fato não obsta a rescisão de tais avenças administrativas, desde que observados os requisitos legalmente estabelecidos para que tal medida possa ser tomada:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. JULGADO DA PRIMEIRA SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25.5.2009). AGRAVO INTERNO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA A QUE SE NEGA PROVIMENTO.1. Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (Enunciado Administrativo 2).

2. É certo que a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça entende que a sanção prevista no art. 87, III da Lei 8.666/1993 produz efeitos não apenas no âmbito do ente que a aplicou, mas na Administração Pública como um todo (REsp. 520.553/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 10.2.2011).

3. A declaração de idoneidade não tem a faculdade de afetar os contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente ou em fase de execução, sobretudo aqueles celebrados com entes públicos não vinculados à autoridade sancionadora e pertencente a Ente Federado diverso (MS 14.002/DF, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJe 6.11.2009).

4. A sanção aplicada tem efeitos apenas ex nunc para impedir que a Sociedade Empresária venha a licitar ou contratar com a Administração Pública pelo prazo estabelecido, não gerando como consequência imediata a rescisão automática de contratos administrativos já em curso (MS 13.101/DF, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Min. ELIANA CALMON, DJe 9.12.2008).

5. Agravo Interno da Sociedade Empresária a que se nega provimento.(AgInt no REsp n. 1.552.078/DF, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 30/9/2019, DJe de 8/10/2019.)

ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1ª SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25/05/2009).

1. Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade "só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento" (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 09.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de licitar ou contratar com a Administração Pública (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridade impetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93.

2. No caso, está reconhecido que o ato atacado não operou automaticamente a rescisão dos contratos em curso, firmados pelas impetrantes.3. Mandado de segurança denegado, prejudicado o agravo regimental.(MS n. 14.002/DF, relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, julgado em 28/10/2009, DJe de 6/11/2009.)

134.          Nesse sentido, a Orientação Normativa nº 49/2014 da Advocacia-Geral da União estabelece que: "A aplicação das sanções de impedimento de licitar e contratar no âmbito da União (art. 7º, da Lei nº 10.250, de 2002) e de declaração de inidoneidade (art. 87, inc. IV, da Lei nº 8.666, de 1993) possuem efeito ex nunc, competindo à Administração, diante de contratos existentes, avaliar a imediata rescisão no caso concreto".

135.          Todavia, conforme adverte Ronny Charles Lopes de Torres[14] a sanção de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública impede a prorrogação dos contratos vigentes celebrados com a pessoa inidônea:

(...)

Embora as sanções "impedimento de licitar e contratar" e "declaração de inidoneidade" não gerem a rescisão do contrato, seus efeitos restritivos impedem a renovação dos contratos de fornecimento contínuo, quando elas se caracterizam como novas contratações.

Assim, se uma empresa contratada, sofre a "impedimento de licitar e contratar" ou "declaração de inidoneidade", mesmo não tendo o contrato rescindido, terá restrição à sua renovação, caso persista  o prazo de aplicação da sanção, no momento da renovação contratual.

(...)

136.           Como se percebe, a aplicação da penalidade da "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" não tem o condão de acarretar a rescisão imediata dos contratos em curso, impedindo tão somente a sua eventual prorrogação, cabendo ainda a Administração avaliar, em relação aos contratos existentes, a possibilidade de rescindi-los, com fundamento nas hipóteses e observados os requisitos legalmente estabelecidos no estatuto jurídico aplicável à contratação do caso concreto.

137.          A propósito, veja-se que a Lei nº 14.133/21 disciplina, no art. 137 e seus nove incisos, o instituto do encerramento do contrato administrativo, com o estabelecimento de seus requisitos formais e suas causas autorizadoras:

Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações:

I - não cumprimento ou cumprimento irregular de normas editalícias ou de cláusulas contratuais, de especificações, de projetos ou de prazos;

II - desatendimento das determinações regulares emitidas pela autoridade designada para acompanhar e fiscalizar sua execução ou por autoridade superior;

III - alteração social ou modificação da finalidade ou da estrutura da empresa que restrinja sua capacidade de concluir o contrato;

IV - decretação de falência ou de insolvência civil, dissolução da sociedade ou falecimento do contratado;

V - caso fortuito ou força maior, regularmente comprovados, impeditivos da execução do contrato;

VI - atraso na obtenção da licença ambiental, ou impossibilidade de obtê-la, ou alteração substancial do anteprojeto que dela resultar, ainda que obtida no prazo previsto;

VII - atraso na liberação das áreas sujeitas a desapropriação, a desocupação ou a servidão administrativa, ou impossibilidade de liberação dessas áreas;

VIII - razões de interesse público, justificadas pela autoridade máxima do órgão ou da entidade contratante;

IX - não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz.

138.          Da leitura dos diversos incisos do supracitado art. 137, vê-se que a única hipótese de rescisão contratual em que pode ser enquadrada a prática ou o estímulo à realização de atos antidemocráticos é aquela constante no inciso VIII, isto é, "razões de interesse público, justificadas pela autoridade máxima do órgão ou da entidade contratante".

139.          Como bem adverte Diego Ornellas Gusmão[15], a própria vigência do Estado Democrático de Direito e do princípio da "dignidade da pessoa humana" dele decorrente impõe que as razões de interesse público hábeis a ensejar o término da avença administrativa devem estar suficientemente expostas a ponto de demonstrar a existência de substantivo risco de surgimento de sérias lesões aos interesses da Administração Pública pela continuidade da execução do contrato:

Cumpre ressaltar que a Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. A colocação no catálogo de direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes  significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CR, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos.

A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.

Conforme ficou assentado pelo Supremo Tribunal Federal, o princípio da dignidade da pessoa humana proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas e humilhações.

Com base nessas premissas, não é possível que haja uma simples alegação vazia de razões de interesse público para a extinção do vínculo contratual.

Sobre a relevância do interesse público, merece ser mantido o entendimento de que a Administração está obrigada a demonstrar que a manutenção do contrato acarretará lesões sérias a interesses cuja relevância não é usual. A alta relevância indica uma importância aos casos ordinários. Há necessidade de extinguir-se o contrato porque sua manutenção será consequência de causas lesivas.

140.          No caso em tela, a situação de a Administração Pública remunerar quem atua para a destruição do regime democrático colide com as normas constitucionais que prevêem o Estado Democrático de Direito (art. 1º), bem como os princípios "republicano" (art. 1º) e da "moralidade" da Administração Pública (art. 37, caput).

141.          Assim, a existência de lesão jurídica a preceitos de caráter fundamental poderia, em tese, caracterizar interesse público extrapatrimonial relevante a autorizar a rescisão da avença administrativa por parte do ente estatal contratante.

142.          Nessa linha de raciocínio, seria possível ao administrador argumentar, desde que de forma justificada e em coerência com os elementos constantes no processo diante do caso concreto, a existência de "razões de interesse público" autorizadoras da descontinuidade do contrato.

143.          Sem embargo, é necessário advertir que tal extinção, para que possa ocorrer, pressupõe, imprescindivelmente, a observância de algumas garantias ao administrado, próprias do Estado Democrático de Direito, tais como o respeito ao "direito adquirido", ao "devido processo legal", ao "contraditório" e à "ampla defesa", conforme observa Diego Ornellas Gusmão[16]:

Serve a advertência de Marçal Justen Filho, no sentido de que o contrato administrativo produz direitos adquiridos, não se admitindo a sua extinção imotivada. A eliminação do arbítrio equivale à necessidade de as decisões administrativas serem relacionadas e proporcionadas aos interesses fundamentais atribuídos ao Estado, o que demanda a sua explicação em termos definitivos e concretos.

A redação do inciso VIII do art. 137 da nova Lei de Licitações é mais lacônica do que a redação do inc. XII do art. 78 da revogada Lei 8.666, de 1993, na medida em que a redação anterior qualificava que o interesse público fosse da alta relevância e amplo conhecimento, sendo que a redação atual apenas trouxe como causa de extinção as razões de "interesse público".

Além disso é imperioso que a Administração discorra os fundamentos que ensejam a necessidade de extinção do contrato, devendo notificar formalmente a empresa contratada, expondo os motivos do término antecipado do negócio jurídico, a fim de ser assegurado o contraditório e a ampla defesa, em especial no que toca a apuração de eventuais perdas e danos.

Esse fato demanda que seja feita uma interpretação do inciso VIII do art. 137 à luz da Constituição, em especial pela ideia de Estado de Direito, na medida em que a atuação administração deve estar lastreada na Lei e no Direito.

144.          No mesmo sentido, como bem adverte Hely Lopes Meirelles[17] , faz-se necessário, em todas as rescisões administrativas,  propiciar ao particular contratado o exercício dos direitos fundamentais ao "contraditório" e à "ampla defesa", bem como certificar-se da real ocorrência do motivo exposto como ensejador do ato praticado, sob pena de sua exposição à anulação por parte do Poder Judiciário por vício de ilegalidade:

(...)

 Por outro lado, em qualquer desses casos exige-se procedimento regular, com oportunidade de defesa e justa causa, pois a rescisão administrativa não é discricionária, mas vinculada aos motivos ensejadores desse excepcional distrato. Assim sendo, o particular contratado, não se conformando com a decisão administrativa final, poderá recorrer às vias judiciais em defesa dos seus direitos. O Judiciário não poderá valorar o mérito da rescisão, mas deverá sempre verificar a existência dos motivos e a sua adequação às normas legais às cláusulas pertinentes, para coibir o arbítrio e o abuso de poder. Se a rescisão for lesiva ao patrimônio público, poderá ser invalidada por ação popular, de iniciativa de qualquer cidadão, como ocorre com todo ato administrativo prejudicial aos interesses protegidos pela Constituição da República (art. 5º, LXXIII) e Lei Federal 4.717, de 19.6.65 (grifos nossos).

(...)

145.          Em que pese a tese aqui a exposta, cabe apontar a importância de que a decisão de rescindir administrativamente o contrato administrativo seja precedida de um adequado juízo de "proporcionalidade" do administrador.

146.          Como já mencionado na introdução a presente manifestação jurídica, a presente análise está sendo feita em caráter geral e abstrato.

147.          Daí que é possível cogitar de situações em que, a depender das características e da condição específica do contrato em concreto, a rescisão administrativa possa acarretar prejuízos financeiros à Administração Pública ou à prestação adequada do serviço público à coletividade, de maneira a, em última perspectiva, prejudicar o próprio interesse público que a rescisão contratual estaria se prestando a salvaguardar.

148.          No ponto, parece ser fundamental, em tal espécie de rescisão administrativa, a avaliação das consequências práticas da medida a ser tomada, nos termos prescritos no art. 20, do Decreto-Lei nº 4.657/42, atualmente denominada "Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro":

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.                    (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)     (Regulamento)

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.                    (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

149.          Trata-se, em síntese, de avaliar se o ato a ser praticado se legitima ante as consequências práticas dele advindas, mediante uma ponderação dos valores e interesses administrativos envolvidos em cada caso concreto sob a ótica do princípio da "proporcionalidade", de que trata, em âmbito doutrinário, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes[18]:

Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit).

O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos.

(...)

O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. (...) (grifos nossos) 

150.          Assim é que a referida avaliação das consequências, no caso de tais rescisões administrativas, possui fundamental importância a fim de que se evite que a aplicação da tese aqui exposta acabe tornando a coletividade e o Estado brasileiro, já duramente lesados pelos atos antidemocráticos em análise, ainda mais afetados no âmbito do funcionamento da Administração Pública e da economicidade na gestão do Erário.

151.          Dessa maneira, a rescisão de contrato administrativo com agentes que praticaram ou financiaram atos antidemocráticos somente poderia ocorrer mediante a observância das devidas condicionantes no caso concreto:

a) A realização do devido processo administrativo legal, com a devida observância dos direitos ao contraditório e à ampla defesa do administrado contratante;

b) A efetiva comprovação da prática ou do incentivo à realização de atos antidemocráticos por parte do contratado;

c) Decisão administrativa explicitamente justificada declinando as razões de interesse público a ensejar a rescisão administrativa;

d) O respeito aos direitos porventura adquiridos em decorrência do contrato administrativo;

e) Avaliação da proporcionalidade das consequências práticas possíveis da rescisão da avença para a Administração Pública.  

152.          Analisada a questão à luz da Lei nº 14.133/21, cabe agora verificar a questão sob a perspectiva dos outros regimes jurídicos ainda vigentes.

153.          É que a própria Lei nº 14.133/21 veda a aplicação combinada do seu regime jurídico com aqueles previstos nas Leis nºs 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/12, de maneira que as regras do sistema sancionatório estabelecido na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não poderiam ser aplicadas aos procedimentos licitatórios e contratos celebrados sob os regimes jurídicos que a precederam:

(...)

Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.

Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

(...)

Art. 193. Revogam-se:

I - os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;

II - a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.

(...)

154.          Nesse sentido, a aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública"  não poderia ser implementada em relação aos agentes submetidos ao regime da Lei nº 8.666/93, uma vez que, conforme já mencionado, este diploma normativo não possui tipificação legal passível de enquadrar a prática ou estímulo à realização de atos antidemocráticos.

155.          De igual modo, conforme também já foi exposto, a própria  Lei nº 10.520/02 (Lei do Pregão), em seu art. 7º, estabelece o contexto do procedimento licitatório ou do contrato administrativo como elemento necessário para que o comportamento inidôneo possa configurar infração administrativa. 

156.          Todavia, a conduta de praticar ou incentivar a realização de atos antidemocráticos poderia sujeitar o seu agente, quando figurar na condição de licitante submetido ao Regime Diferenciado de Contratações estabelecido na Lei nº 12.462/11, à penalização administrativa.

157.          Note-se que aquela norma, antes mesmo do advento da Lei nº 14.133/21, havia estabelecido como infração para os licitantes submetidos ao seu regime jurídico a conduta de "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal", no inciso VI, do seu art. 47, o qual se transcreve in totum:

Art. 47. Ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas no instrumento convocatório e no contrato, bem como das demais cominações legais, o licitante que:      

I - convocado dentro do prazo de validade da sua proposta não celebrar o contrato, inclusive nas hipóteses previstas no parágrafo único do art. 40 e no art. 41 desta Lei;

II - deixar de entregar a documentação exigida para o certame ou apresentar documento falso;

III - ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;

IV - não mantiver a proposta, salvo se em decorrência de fato superveniente, devidamente justificado;

V - fraudar a licitação ou praticar atos fraudulentos na execução do contrato;

VI - comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal; ou

VII - der causa à inexecução total ou parcial do contrato.

158.          Veja-se que, a exemplo do que ocorre com a redação do art. 155 da Lei nº 14.133/21, o legislador, nos casos que entendeu oportuno fazer, optou por explicitar nos incisos as circunstâncias de ocorrência da configuração de cada um dos tipos infracionais veiculados no art. 47 da Lei nº 12.462/11.

159.          No caso dos incisos I ("convocado dentro do prazo de validade da sua proposta não celebrar o contrato, inclusive nas hipóteses previstas no parágrafo único do art. 40 e no art. 41 desta Lei"), II ("deixar de entregar a documentação exigida para o certame ou apresentar documento falso")  e IV ("não mantiver a proposta, salvo se em decorrência de fato superveniente, devidamente justificado"), do art. 42, da Lei nº 12.462/11, o legislador pareceu deixar claro que aquelas infrações ocorrem em momento pré-contratual.

160.          Por sua vez, os incisos III ("ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado") e VII ("der causa à inexecução total ou parcial do contrato") do art. 42 da Lei nº 12.462/11, correlacionam a configuração de tais infrações ao momento de execução do contrato.

161.          Já o inciso V, do art. 42 do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (fraudar a licitação ou praticar atos fraudulentos na execução do contrato) deixa nítido que a fraude em questão possui a sua ocorrência em ambos os momentos, isto é, tanto no decorrer do procedimento licitatório como na execução do contrato.

162.          Por outro lado, - de maneira muito similar ao que ocorre com o tipo infracional previsto no art. 155, inciso X, da Lei nº 14.133/21 - o art. 42, inciso VI, da Lei nº 12.462/11, não atrela à ação de "comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal" qualquer circunstância específica como requisito para a sua configuração.

163.          Dessa maneira, pelas mesmas razões declinadas em relação à configuração do art. 155, X, da Lei nº 14.133/21, é possível traçar leitura do Regime Diferenciado de Contratações que permita enquadrar a conduta de praticar ou estimular a realização de atos antidemocráticos como "comportamento inidôneo" , nos termos do seu art. 47, inciso VI.

164.          Consequentemente, desde que venham a figurar como licitantes nas Contratações do Regime Diferenciado de Contratação, as pessoas físicas ou jurídicas que realizaram ou fomentaram atos antidemocráticos estariam sujeitas à penalidade de impedimento de licitar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios prevista no art. 47, caput c/c inciso VI ​da Lei nº 12.462/11.

165.          Em relação à abrangência desta sanção, tem-se que esta se limita ao âmbito do ente federativo em que é aplicada, conforme destaca, em âmbito doutrinário, o Ministro do Tribunal de Contas da União Benjamin Zymler[19]:

(...)

10.2 Âmbito de abrangência

Quanto ao âmbito de abrangência, a sanção de impedimento para licitar de que trata o RDC está restrita ao ente federativo que a aplicar (União, estado ou município), de forma similar à sanção cabível quando da realização de pregões (art. 7º da Lei nº 10.520/2002).

Trata-se, pois, de abrangência diversa das fixadas para a declaração de inidoneidade de que trata o inciso IV do art. 87 da Lei nº 8.666/1993 — aplicável a todos os entes da federação —, a suspensão temporária de que trata o inciso III do art. 87 da Lei nº 8.666/1993 — restrita ao órgão/entidade aplicador da sanção — e a declaração de inidoneidade a cargo do Tribunal de Contas da União (art. 46 da Lei nº 8.443/1992) — restrita à administração pública federal. 

(...)

166.          No mesmo sentido se posiciona Juliane Erthal de Carvalho[20] ratificando a opinião de Marçal Justen Filho a respeito do tema:

(...)

2.1.2 A amplitude do impedimento

No que diz respeito ao âmbito de eficácia desse impedimento, o caput do art. 47 da Lei nº 12.462 estabelece que o particular “ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, pelo prazo de até 5 (cinco) anos”.

A conjunção “ou” empregada deve ser compreendida em sua função de “alternatividade”. Partindo-se do princípio de que a Lei nº 12.462 não estabeleceu distinção entre as figuras da suspensão do direito de licitar e da declaração de inidoneidade para contratar, tal como ocorre no regime da Lei nº 8.666, não parece haver razão para que se restrinja o direito de um particular licitar e contratar com outras esferas além daquela que aplicou a sanção. O entendimento contrário representaria um sancionamento não previsto em lei.

Nessa linha, confira-se o entendimento de Marçal Justen Filho a respeito do art. 7º da Lei nº 10.520:

A utilização da preposição “ou” indica disjunção, alternatividade. Isso significa que a punição terá efeitos na órbita interna do ente federativo que aplicar a sanção. Logo, e considerando o enfoque mais tradicional adotado a propósito da sistemática da Lei nº 8.666, ter-se-ia de reconhecer que a sanção prevista no art. 7º da Lei do Pregão consiste em suspensão do direito de licitar e contratar. Não é uma declaração de inidoneidade. Portanto, um sujeito punido no âmbito de um Município não teria afetada sua idoneidade para participar de licitação promovida na órbita de outro ente federal.

Ou seja, o impedimento aplicado contra o particular que praticar conduta ilícita nas licitações ou contratações administrativas promovidas no âmbito do RDC se estenderá no máximo à esfera da federação que aplicou a penalidade.

Por outro lado, ao definir que o impedimento terá por prazo máximo o período de cinco anos, a Lei nº 12.462 confere maior rigor na punição se comparado com o regime geral da Lei nº 8.666, que fixa em dois anos o prazo da suspensão do direito de licitar e o impedimento de contratar — o que certamente se deve à importância dos objetos a serem licitados e posteriormente contratados no âmbito do RDC.

O dispositivo, portanto, contém uma previsão abstrata acerca da amplitude máxima possível para a penalidade. Alude-se ao impedimento de licitação “pelo prazo de até 5 (cinco) anos” e à extensão desse impedimento às várias pessoas administrativas.

A penalidade in concreto será aplicada pelo órgão responsável pela licitação. Assim, a mera capitulação da penalidade, ou seja, a referência ao art. 47 da Lei nº 12.462, não é relevante para a interpretação acerca da extensão da pena. Do mesmo modo que é cabível a fixação de prazo inferior ao máximo de cinco anos, também é admissível afixação de abrangência inferior à máxima legalmente prevista.

(...)

167.          Além disso, deve-se atentar para o fato de que o § 1º do art. 47 da Lei nº 12.462/11 dispõe que: "A aplicação da sanção de que trata o caput deste artigo implicará ainda o descredenciamento do licitante, pelo prazo estabelecido no caput deste artigo, dos sistemas de cadastramento dos entes federativos que compõem a Autoridade Pública Olímpica".

168.          Como bem salienta, em âmbito doutrinário, o Ministro Benjamin Zymler[21], a aplicação da referida sanção importa o descredenciamento do licitante em todos os bancos do ente público competente, de maneira que, no âmbito federal, enseja o registro da penalidade do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores - SICAF:

(...)

10.4 Consequências acessórias da aplicação das sanções

A aplicação da sanção de impedimento para participar de licitações prevista na Lei nº 12.462/2011 implicará ainda o descredenciamento do licitante, pelo prazo da penalidade, dos sistemas de cadastramento dos entes federativos que compõem a Autoridade Pública Olímpica (§1º do art. 47 da Lei nº 12.462/2011).

Uma primeira observação a ser feita é que a referida penalidade de impedimento para licitar abrange qualquer licitação pública e não somente aquelas efetuadas com base no Regime Diferenciado. Assim, para dar efetividade à punição, é pertinente a determinação para que haja o descredenciamento dos punidos dos cadastros gerais dos entes públicos e não de eventuais cadastros específicos do Regime Dife­renciado.

Nesse sentido, no âmbito federal, as penalidades devem ser obrigatoriamente registradas no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf, consoante o §2º do art. 111 do Decreto nº 7.581/2011.

Veja-se que a norma menciona apenas a sanção prevista na Lei nº 12.462/2011, nada dispondo acerca do procedimento a ser adotado quando a impossibilidade para participar de licitações decorre da aplicação das sanções estabelecidas na Lei nº 8.666/1993. Entretanto, por analogia, cabe adotar procedimento idêntico para ambas as hipóteses. 

(...)

169.          No mesmo sentido, pontua Juliane Erthal de Carvalho[22]:

(...)

2.9 Sanção de descredenciamento

Ainda impende tratar do §1º do art. 47 da Lei nº 12.462, que alude à possibilidade de sanção de descredenciamento do licitante nos sistemas de cadastramento dos entes que fizerem parte da Autoridade Pública Olímpica (APO). Essa previsão assemelha-se à do art. 7º da Lei nº 10.520, que disciplina o descredenciamento do SICAF.

O Decreto nº 7.581 no §2º do art. 111 determina que todas as penalidades que forem aplicadas no âmbito do RDC devem ser obrigatoriamente registradas no SICAF. 

O objetivo do sancionamento é impedir a manutenção de um cadastro com licitantes impedidos de licitar e contratar com a APO e também com o Poder Executivo Federal. Afinal, o objetivo do cadastramento é facilitar o trabalho da Administração na seleção dos interessados.

No caso de necessidade de contratação emergencial, por exemplo, isso será ainda mais relevante, vez que há exiguidade de tempo para análises mais aprofundadas sobre a contratação e isso proporcionará maior segurança à contratação realizada, porque evita possíveis contratações indevidas.

(...)

170.          Em relação ao prazo  prescricional para a aplicação da sanção tem-se que a Lei nº 12.462/11 não estabeleceu nenhum dispositivo específico, prevendo, no seu art. 47, § 2º, a aplicação subsidiária das regras estabelecidas na Lei nº 8.666/93: "As sanções administrativas, criminais e demais regras previstas no Capítulo IV da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, aplicam-se às licitações e aos contratos regidos por esta Lei".

171.          A Lei nº 8.666/93, contudo, não traz disciplina específica a respeito dos prazos aplicáveis à pretensão punitiva relativa ao sancionamento das condutas previstas naquele diploma normativo como infrações administrativas.

172.          Dessa feita, o prazo aplicável à Administração Pública Federal, em relação à aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.666/93, é aquele estabelecido na Lei nº 9.873/99, a qual "estabelece prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, e dá outras providências".

173.          A referida lei estabelece como regra o prazo quinquenal para o exercício da pretensão punitiva administrativa: "Art. 1º  Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado".

174.          O Superior Tribunal de Justiça, aplicando o mesmo raciocínio, já desenvolveu o entendimento que o prazo prescricional aplicável à pretensão punitiva administrativa em relação às sanções da Lei nº 8.666/93 é de cinco anos, contados da data da prática do ato, ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a conduta:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. PRAZO PRESCRICIONAL QUINQUENAL. TERMO INICIAL. 1. O Plenário do STJ decidiu que "aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça" (Enunciado Administrativo n. 2).2. Segundo dispõe o art. 1º da Lei n. 9.873/1999, "prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado."3. O termo inicial do prazo prescricional da ação punitiva estatal que impôs proibição de licitar e contratar com a Administração "coincide com o momento da ocorrência da lesão ao direito, em consagração do princípio universal da actio nata" (MS 15.036/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/11/2010, DJe 22/11/2010).4. Hipótese em que a Corte Regional afastou o prazo quinquenal da Lei n. 9.873/1999 e aplicou o decenal da lei civil para a prescrição.5. Manutenção da decisão que determinou o retorno dos autos à origem para reapreciação da prescrição, considerando-se o teor do art. 1º da Lei n. 9.873/1999 quanto ao prazo (quinquenal) e ao termo inicial de seu cômputo (data do fato).6. Agravo interno desprovido.(AgInt no AgInt no AREsp n. 932.019/DF, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 23/10/2018, DJe de 28/11/2018.)

175.          Assim sendo, o prazo prescricional aplicável ao "comportamento inidôneo" desenvolvido pelo licitante submetido ao Regime Diferenciado de Contratações Administrativas é de cinco anos contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a conduta ilícita.

176.          Em relação à autoridade competente para aplicar a sanção de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública prevista no art. 47, caput, da Lei nº 12.462/11, tem-se que o referido diploma legal foi silente a respeito da matéria.

177.          Caberia então, por analogia, utilizar a mesma lógica consagrada na Orientação Normativa nº 48 da Advocacia-Geral da União:

É COMPETENTE PARA A APLICAÇÃO DAS PENALIDADES PREVISTAS NAS LEIS N°S 10.520, DE 2002, E 8.666, DE 1993, EXCEPCIONADA A SANÇÃO DE DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE, A AUTORIDADE RESPONSÁVEL PELA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO OU OUTRA PREVISTA EM REGIMENTO.

178.          Veja-se, portanto, que a lógica que inspirou a edição da supracitada orientação normativa foi o fato de a Lei nº 8.666/93 ter disciplinado explicitamente a competência para a declaração de inidoneidade, não tendo assim procedido em relação às demais penalidades estabelecidas no âmbito das licitações e das contratações públicas.

179.          Assim, não havendo competência explicitamente estabelecida a qualquer autoridade para a aplicação da penalidade de impedimento de licitar veiculada na Lei nº 12.462/11, caberia à autoridade responsável pela celebração do contrato ou outra prevista em regimento, a depender do caso concreto, fazê-lo.

180.          Feitas essas considerações, há aqui que se ressaltar que eventual punição em tal sentido há de ser necessariamente precedida da realização do "devido processo legal", em que sejam garantidos os direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa", por decorrência do mandamento veiculado no próprio texto constitucional, nos já referidos incisos LIV e LV, do seu art. 5º.

181.          Nesse sentido, parece correta a citação de Juliane Erthal de Carvalho[23] quando assevera:

2.2.2 A necessidade de respeito ao devido processo legal

A Administração Pública só poderá sancionar adequadamente o particular e atingir o fim de proteção dos interesses coletivos caso adote como meio o processo administrativo.

A despeito de a Lei nº 12.462 não ter explicitado a exigência de defesa prévia para o sancionamento, é evidente que o devido processo legal deve ser respeitado na sua plenitude, por força do próprio texto constitucional (art. 5º, LIV e LV) conjugado com os dispositivos da Lei nº 8.666 (caput do art. 87), que tem aplicação subsidiária. Deve-se garantir a manifestação do particular antes da imposição de qualquer sanção.

182.          Na linha do que já foi exposto, cabe também esclarecer que, a exemplo da sanção de "inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública", a sanção de "impedimento de licitar e contratar no âmbito da União" não possui efeito rescisório automático, nos termos do que dispõe a já citada Orientação Normativa nº 49/2014 da Advocacia-Geral da União.

183.          Daí resulta o enfrentamento de um outro problema, qual seja, estabelecer o adequado tratamento jurídico, à luz da premissa constitucional aqui já exposta, aos contratos em curso celebrados pelo regimes jurídicos das Leis nºs 8.666/93, 10.520/02 da Lei nº 12.462/11, com pessoas físicas ou jurídicas que praticaram ou instigaram a execução de atos antidemocráticos.

184.          Isto porque em relação aos contratos administrativos celebrados sob o regime destas últimas normas, não seria possível a aplicação da Lei nº 14.133/21.

185.          A Lei nº 10.520/02 não traz nenhuma disciplina específica a respeito da matéria da rescisão dos contratos administrativos celebrados pelo regime daquela norma, motivo pelo qual é aplicável a tais avenças a regulamentação constante norma geral de contratações públicas vigente à época de sua edição, conforme determinação do art. 9º da Lei do Pregão: "Aplicam-se subsidiariamente, para a modalidade de pregão, as normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993".

186.          Por sua vez, o Regime Diferenciado de Contratações estabelecido pela Lei nº 12.462/11 fixou, em seu art. 39, que: "Os contratos administrativos celebrados com base no RDC reger-se-ão pelas normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das regras específicas previstas nesta Lei"

187.          Todavia, a mesma norma não estabelece disciplina específica a respeito da rescisão dos contratos administrativos celebrados sob sua égide, motivo pelo qual entende-se aplicável o regime estabelecido na Lei nº 8.666/93.

188.          Assim, no que pertine à disciplina da extinção dos contratos administrativos, a disciplina da Lei nº 8.666/93 é a aplicável aos contratos administrativos celebrados sob sua égide, bem como às avenças celebradas pelo regime das Leis nºs 10.520/02 e 14.262/11.

189.          Os incisos I a XII; e XVII do art. 78, da Lei nº 8.666/93, estabelecem as hipóteses de rescisão administrativa dos contratos administrativos:

Art. 78.  Constituem motivo para rescisão do contrato:

I - o não cumprimento de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos;

II - o cumprimento irregular de cláusulas contratuais, especificações, projetos e prazos;

III - a lentidão do seu cumprimento, levando a Administração a comprovar a impossibilidade da conclusão da obra, do serviço ou do fornecimento, nos prazos estipulados;

IV - o atraso injustificado no início da obra, serviço ou fornecimento;

V - a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia comunicação à Administração;

VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato;

VII - o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para acompanhar e fiscalizar a sua execução, assim como as de seus superiores;

VIII - o cometimento reiterado de faltas na sua execução, anotadas na forma do § 1o do art. 67 desta Lei;

IX - a decretação de falência ou a instauração de insolvência civil;

X - a dissolução da sociedade ou o falecimento do contratado;

XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que prejudique a execução do contrato;

XII - razões de interesse público, de alta relevância e amplo conhecimento, justificadas e determinadas pela máxima autoridade da esfera administrativa a que está subordinado o contratante e exaradas no processo administrativo a que se refere o contrato;

(...)

XVII - a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato.

190.          Das hipóteses estabelecidas de rescisão contratual administrativa, vê-se que a única que pode ser aplicável, em tese, ao caso em tela é aquela prevista no inciso XII do supracitado art. 78, da Lei nº 8.666/93.

191.          Sobre a rescisão em razão do interesse público, deve-se pontuar que a lei somente autoriza a sua ocorrência quando baseada em "razões de interesse público, de alta relevância e amplo conhecimento, justificadas e determinadas pela máxima autoridade da esfera administrativa a que está subordinado o contratante e exaradas no processo administrativo a que se refere o contrato".

192.          Nota-se, portanto, que não é qualquer "interesse público" que autoriza a rescisão contratual com fundamento no art. 78, inciso XII, da Lei nº 8.666/93, mas sim um interesse coletivo qualificado.

193.          Tratando sobre o tema da rescisão por razões de interesse público, à luz da Lei nº 8.666/93, José dos Santos Carvalho Filho[24]  bem sintetiza quatro pressupostos necessários à utilização do instituto por parte da Administração Pública, quais sejam:

1. que as razões administrativas sejam altamente relevantes;

2. que a Administração promova amplo conhecimento desses motivos;

3. que tais razões sejam justificadas e determinadas pela mais alta autoridade na respectiva esfera administrativa. Por falta da devida motivação, já se anulou ato de rescisão contratual; e

4. que tudo fique formalizado no processo administrativo, devendo o administrador dar ciência ao contratado dos motivos da rescisão, bem como oferecer-lhe proposta para eventual recomposição de prejuízos.

194.          Dessa maneira, vê-se que, em relação a tais contratos administrativos, pela mesmas razões expostas em relação ao que se concluiu sobre os contratos celebrados sob o regime da Lei nº 14.133/21, também se mostra possível, em tese, a aplicação do instituto da rescisão administrativa em razão do reconhecimento da prática de atos antidemocráticos.

195.          É que, na mesma linha do que já foi exposto, o risco de lesão aos preceitos constitucionais do Estado Democrático de Direito (art. 1º), do princípio "republicano" (art. 1º) e da "moralidade" da Administração Pública (art. 37, caput),  a rescisão de avença administrativa celebrada com pessoa que desenvolve atuação para a derrubada do regime democrático pode ser compreendida como "interesse público" de extrema relevância.

196.          Logo, guardando absoluta coerência com o que já foi exposto anteriormente, pode-se concluir que, de acordo com o ponto de vista jurídico ora demonstrado, os contratos administrativos celebrados com pessoas que praticaram ou estimularam os atos antidemocráticos poderiam ser rescindidos administrativamente com fundamento no inciso XII, do art. 78, da Lei nº 8.666/93:

a) a realização do devido processo administrativo legal, com a devida observância dos direitos ao contraditório e à ampla defesa do administrado contratante;

b) A efetiva comprovação da prática ou do incentivo à realização de atos antidemocráticos por parte do contratado;

c) Decisão administrativa explicitamente justificada declinando as razões de interesse público a ensejar a rescisão administrativa;

d) O respeito aos direitos porventura adquiridos em decorrência do contrato administrativo;

e) A avaliação da proporcionalidade das consequências da medida a ser implementada com a conclusão de que a aplicação da medida não resultará em prejuízos para a Administração Pública. 

197.          Isto posto, cabe alertar que a tese desenvolvida na presente manifestação jurídica, tanto em relação à aplicação das penalidades previstas nas Leis nºs 14.133/21 e 12.462/11, quanto no tocante à rescisão contratual administrativa, deve ser utilizada em caráter excepcional, somente nos casos em que for cabalmente comprovada, após a realização do devido processo legal administrativo, a atuação antidemocrática do licitante ou do contratado no caso concreto.

198.          No ponto, cabe apenas destacar que a comprovação do fato ilícito acima aludida poderá ocorrer, inclusive, mediante o translado da "prova emprestada" formada em processos judiciais que versem sobre os mesmos fatos apurados no âmbito do processo administrativo de responsabilização do contratante ou do licitante. 

199.          Atente-se para o fato de que a jurisprudência pátria consolidou entendimento pela possibilidade da utilização da "prova emprestada" em processos administrativos de caráter sancionatório, desde que não possua caráter ilícito. A propósito, cabe citar alguns julgamentos do Supremo Tribunal Federal em que a referida tese foi adotada no âmbito daquela Corte:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA. CONCURSO MATERIAL. FRAUDE. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. ADMINISTRADOR DE HOSPITAL. SIGILOS BANCÁRIO E FISCAL. PROVA EMPRESTADA. APLICAÇÃO RETROATIVA DE LEI. CARÁTER SANCIONADOR. 1. A competência da TCU é fixada a partir da origem dos recursos públicos, logo independe da natureza do ente envolvido na relação jurídica, inclusive na seara do Sistema Único de Saúde. 2. É possível a utilização em processo administrativo de provas emprestadas de processo penal, quando haja conexão entre os feitos. 3. A controvérsia relativa à retroatividade da aplicação da Lei 8.443/92 ao caso concreto cinge-se ao âmbito infraconstitucional. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.(RE 934233 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 14/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-234  DIVULG 03-11-2016  PUBLIC 04-11-2016)

EMENTA AGRAVO INTERNO EM RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DEMISSÃO DE POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA. UTILIZAÇÃO DE PROVA EMPRESTADA EM PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS AUTORIZADAS JUDICIALMENTE. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de impossibilidade de inovação do objeto da inicial do mandado de segurança para incluir questões não suscitadas na instância a quo. Precedentes.  2. A comunicabilidade entre as esferas administrativa e penal é restrita às situações em que configurada a inexistência material do fato ou a negativa de sua autoria. 3. Dados obtidos em interceptações telefônicas realizadas com chancela judicial, no curso de investigação criminal ou de instrução processual penal, podem ser utilizados como prova emprestada em processo administrativo disciplinar. Precedentes. 4. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, por se tratar de recurso interposto em mandado de segurança (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula nº 512/STF). 5. Agravo interno conhecido e não provido, com aplicação, no caso de votação unânime, da penalidade prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC, calculada à razão de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa. (RMS 30295 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 04/02/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 12-02-2019  PUBLIC 13-02-2019)

EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. INTERPOSIÇÃO SOB A ÉGIDE DO CPC/1973. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR INSTAURADO CONTRA MAGISTRADO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA E CONCORRENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. VALIDADE DA UTILIZAÇÃO DE PROVA EMPRESTADA. DADOS OBTIDOS EM INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS AUTORIZADAS JUDICIALMENTE, PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. TEORIA DO JUÍZO APARENTE. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA EM RELAÇÃO A AUTORIDADES DETENTORAS DE FORO. REMESSA AOS ÓRGÃOS COMPETENTES. PORTARIA DE INSTAURAÇÃO. CONGRUÊNCIA. HIPÓTESES DE COMUNICABILIDADE DAS ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA QUE NÃO SE FAZEM PRESENTES. PENA DE APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. PROPORCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA COMPATÍVEL COM AS EXIGÊNCIAS DA AÇÃO MANDAMENTAL. 1. O Conselho Nacional de Justiça exerce o poder disciplinar que lhe foi outorgado pela Constituição da República de forma originária e concorrente. Precedente: ADI 4638 MC-Ref/DF, Pleno, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014. 2. Dados obtidos em interceptações telefônicas realizadas com chancela judicial, no curso de investigação criminal ou de instrução processual penal, podem ser utilizados como prova emprestada em processo administrativo disciplinar. 3. À luz dos elementos coligidos aos autos, não há falar em situação similar à enfrentada pela Segunda Turma desta Corte no RHC nº 135683, pois, diferentemente do que ali se verificou, não restou evidenciado, na espécie, indevido retardo no envio, aos órgãos jurisdicionais competentes, das provas fortuitamente descobertas no tocante a autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função. 4. O rito especial do mandado de segurança não é compatível com a dilação probatória. Precedentes. 5. A defesa, no processo administrativo disciplinar, ocorre em relação aos fatos descritos na portaria de instauração. Precedentes. 6. Ausente conclusão do juízo criminal pela prova da inexistência do fato ou pela negativa de autoria, não estão presentes circunstâncias suscetíveis de autorizar excepcional comunicabilidade das esferas penal e administrativa. 7. Consignada a existência de acervo probatório demonstrativo da prática de infração disciplinar grave, como tal suscetível de justificar a aplicação da pena de aposentadoria compulsória ao impetrante, não se detecta, de plano, como exigível nesta sede mandamental, ilegalidade no ato apontado como coator. 8. Agravo regimental conhecido e não provido.(MS 30361 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 29/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018  DIVULG 31-01-2018  PUBLIC 01-02-2018)

200.          O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, sedimentou o entendimento de que a prova licitamente produzida em processo judicial pode ser emprestada e utilizada no processo administrativo sancionatório, desde que garantido o respeito aos direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa" do administrado:

SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE COMBATE A FUNDAMENTOS AUTÔNOMOS DO ACÓRDÃO. APLICAÇÃO DO ÓBICE DA SÚMULA N. 283/STF. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS ADMINISTRATIVA E PENAL. ESCUTA AMBIENTAL REALIZADA COM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL EM PROCESSO PENAL. UTILIZAÇÃO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE DA PENA APLICADA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. IMPOSSIBILIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO. I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 2015 para o presente Agravo Interno, embora o Recurso Ordinário estivesse sujeito ao Código de Processo Civil de 1973.  II - A falta de combate a fundamento suficiente para manter o acórdão recorrido justifica a aplicação, por analogia, da Súmula n. 283 do Supremo Tribunal Federal.  III - O aresto atacado encontra-se em harmonia com a jurisprudência desta Corte segundo a qual o processo administrativo é, em regra, autônomo em relação ao processo penal, somente experimentando seus reflexos nos casos de decisão absolutória por inexistência de fato (art. 386, I, CPP) ou negativa de autoria (art. 386, IV, CPP). IV - A Corte Especial, no julgamento da Ação Penal n. 869/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, em 20.11.2017, DJe 01.03.2018, firmou entendimento segundo o qual, a escuta ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro não torna a prova ilícita, tampouco pode ser confundida com a quebra do sigilo de comunicação, que depende de prévia autorização judicial. V - A 1ª Seção desta Corte no julgamento do MS 17.900/DF, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 29.08.2017 firmou orientação segundo a qual é possível a utilização, como prova emprestada, de escuta telefônica derivada de processo penal, com autorização judicial, no processo administrativo disciplinar, desde que seja assegurada a garantia do contraditório ao Acusado. VI - Esta Corte possui entendimento de que o mandado de segurança não é meio adequado para a análise da proporcionalidade e razoabilidade da penalidade administrativa imposta a servidores públicos, por não admitir dilação probatória. VII - Em processo administrativo disciplinar, quando verificado que a conduta imputada ao investigado configura hipótese na qual a lei impõe a pena de demissão, a Administração Pública não pode aplicar sanção mais branda, porquanto se trata de ato vinculado. VIII - O Agravante não apresenta, no agravo, argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida. IX - Em regra, descabe a imposição da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015 em razão do mero desprovimento do Agravo Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação, o que não ocorreu no caso. X - Agravo Interno improvido.(AgInt no RMS n. 49.464/BA, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 8/8/2022, DJe de 12/8/2022.)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR (PAD). PENALIDADE DE DEMISSÃO. PRESCRIÇÃO E EXCESSO DE PRAZO NÃO EVIDENCIADOS. CERCEAMENTO DE DEFESA E AFRONTA AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. NÃO OCORRÊNCIA. UTILIZAÇÃO DE PROVAS EMPRESTADAS. CABIMENTO. PRECEDENTES. ATO DE IMPROBIDADE. DESNECESSIDADE DE PRÉVIO PROCESSO JUDICIAL PARA APLICAR A PENA DE DEMISSÃO EM PROCESSO ADMINISTRATIVO. PRECEDENTES. AFERIÇÃO DA CONDUTA DO AGENTE E REVALORAÇÃO DAS PROVAS NA ESTREITA VIA MANDAMENTAL. IMPOSSIBILIDADE. ATUAÇÃO JUDICIAL LIMITADA AO ASPECTO PROCESSUAL DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. ATO VINCULADO. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE PENALIDADE DIVERSA. PRECEDENTES. 1. Tendo o recurso sido interposto contra decisão publicada na vigência do Código de Processo Civil de 2015, devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele previsto, conforme Enunciado Administrativo n. 3/2016/STJ. 2. A teor da Súmula 635/STJ, "Os prazos prescricionais previstos no art. 142 da Lei n. 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido - sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar - e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção." 3. In casu, extrai-se das informações dos autos e também do histórico traçado pela autoridade coatora, que entre a data de conhecimento dos fatos (16/01/2017) e a instauração do PAD (02/03/2017) não se efetivou o transcurso do prazo quinquenal. Como o prazo máximo para conclusão do PAD é de 140 dias, por força dos artigos 152 e 167 da Lei n. 8.112/1990, o procedimento disciplinar deveria ter finalizado em 24/07/2017, a partir de quando se iniciaria, novamente, a contagem do prazo quinquenal, em atenção ao § 4° do artigo 142 da Lei n. 8.112/1990. Nesse cenário, a autoridade coatora teria até o dia 08/06/2022 para julgar o processo disciplinar. Como o ato demissório (Portaria n. 11.624) foi publicada em 04/10/2021, não procede a alegada ocorrência de prescrição. 4. Segundo a jurisprudência desta Corte, o controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e à legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar. Precedentes. 5. Na espécie, ao contrário do afirmado pela recorrente, constata-se que lhe foi garantido o pleno exercício dos direitos constitucionais ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal, além de ter-lhe sido oportunizado o livre acesso à Comissão e aos autos, não se vislumbrando qualquer vício capaz de gerar nulidade. 6. "a utilização de provas emprestadas, desde que regularmente produzida no processo de origem, não acarreta nulidade do processo administrativo disciplinar por violação do direito ao contraditório e à ampla defesa" (AgInt no MS 26.852/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 20/8/2021). 7. Esta Corte possui a orientação de que "à luz do disposto no art. 12 da Lei 8.429/90 e nos arts. 37, § 4º, e 41 da CF/88, as sanções disciplinares previstas na Lei 8.112/90 são independentes em relação às penalidades previstas na Lei de Improbidade Administrativa. Daí por que é dispensável o trânsito em julgado da Ação por Improbidade Administrativa para que seja editado o ato de demissão com base no art. 132, IV, do Estatuto do Servidor Público Federal" (MS 28.214/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 30/6/2022). 8. Na hipótese vertente, infere-se que a demissão da recorrente, decorreu da prática das condutas ilícitas tipificadas como valimento do cargo e improbidade administrativa (artigos 117, V, e 132, IV, da Lei n. 8.112/1990), razão pela qual mesmo que não prevalecesse a capitulação legal da improbidade, remanesceria fundamento apto à manutenção do ato demissório, qual seja, "valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública". 9. "não obstante os procedimentos administrativos estarem sujeitos a controle judicial amplo quanto à legalidade, uma vez verificado que a conduta praticada pelo servidor se enquadra em hipótese legal de demissão (art. 132 da Lei 8.112/1990), a imposição dessa sanção é ato vinculado, não podendo o administrador ou o Poder Judiciário deixar de aplicá-la ou fazer incidir sanção mais branda amparando-se em juízos de proporcionalidade e de razoabilidade". (MS 26.941/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 17/12/2021).10. Agravo interno não provido.(AgInt no MS n. 28.370/DF, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 29/11/2022, DJe de 2/12/2022)

201.          Em reforço ao que já foi exposto, cabe enfatizar a necessidade de que a atividade de avaliação da prova coletada no processo administrativo sancionatório seja realizada pela autoridade competente em um contexto de garantia substantiva dos direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa", previstos no art. 5º, LV, da Constituição Federal.

202.          Nesse contexto, faz-se imperioso o resguardo dos direitos do administrado assegurados pelo art. 3º da Lei nº 9.784/99:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.

203.          Daí a necessidade de garantia substantiva ao administrado dos direitos de "informação", de "manifestação" e de "consideração" durante todo o processo administrativo sancionatório, bem como seja facultada ao interessado a possibilidade de assistência técnica por meio de advogado. Sem embargo, mister também que haja o mútuo tratamento de boa-fé e lealdade processual entre as partes no decorrer do feito, conforme bem destaca, em âmbito doutrinário, o professor Juliano Heinen[25]:

(...)

O art. 3º da mencionada legislação define os direitos do administrado e o art. 4º define os seus deveres. Assim, este rol estabelece uma verdadeira relação processual entre as partes que se inserem no processo administrativo. O art. 3º, por exemplo, contempla uma série de consectários do contraditório e da ampla defesa, os quais possuem assento no artigo 5º, inciso LV, da CF/88. E pelas disposições ali previstas, consagrou-se o modelo colaborativo de processo.

De outro lado, o contraditório pode ser "forte", porque arraigado a um "Estado Constitucional". Então, deixa-se, aqui, de se ter a lei como leme do sistema, porque será a Constituição Federal a norma fundamental de todo o ordenamento, trazendo, ao processo, um câmbio no papel do contraditório. Ela propõe um contraditório forte, característica da prática jurídica de muitos países europeus. O contraditório forte possui três momentos/elementos fundamentais:

(a) Direito de informação: é o direito do cidadão e dever daquele que conduz o processo administrativo de cientificar às partes dos acontecimentos do processo e do conteúdo dos atos processuais. A materialização deste elemento se dá pela publicidade dos atos, pela notificação do requerido, pela intimação das partes etc.;

(b) Direito de manifestação: trata-se da possibilidade de falar no processo. Então deve ser assegurada ao cidadão a oportunidade de expor seus argumentos. Deve-se, além disso, eliminar o contraditório inútil;

(c) Direito de consideração: por fim, a autoridade pública é obrigada a considerar aquilo que foi debatido no processo, porque deve levar em conta o que se disse nos autos. Logo, não se pode admitir decisões surpreendentes. Não pode tal sujeito julgar com base em fundamento nunca antes propalado sequer pelas partes, porque, justamente, elas nem sequer puderam rebater ou se manifestar sobre esta "razão de decidir". As partes deveriam ter tido a oportunidade de se manifestar, ainda que a questão pudesse ter sido decidida de ofício. Mas não é só:  a decisão administrativa  deverá considerar, ou seja, deverá se manifestar sobre todos os argumentos veiculados pelas partes. Consideramos que a decisão administrativa não está bem fundamentada no caso de ela apenas considerar um fundamento, sem repelir ou mediar os demais - por exemplo, silenciando a respeito.

A ampla defesa, ao seu turno, deverá ser garantida plenamente, podendo a parte fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei. Esta faculdade, inclusive, diante de processo administrativo disciplinar, ficou clara pelos termos da Súmula Vinculante nº 5, sendo que o processo administrativo não é nulo pela ausência de defesa técnica. Veja que a lei determina que se oportunize a presença de advogado, não ela não (sic) é obrigatória.

A imposição de um tratamento recíproco de boa-fé e de lealdade processual de todos quantos forem os atores da relação jurídica processual, consubstancia o conceito de "probidade processual". Em termos objetivos, a dita "probidade" alcança o cidadão que é parte, os auxiliares do processo (v.g., peritos, testemunhas tec.) (sic), bem como aquele que venha a julgar (grifos do autor).

204.          Ainda em relação ao tema, é imperioso ressaltar que o caráter excepcional das medidas administrativas abordadas no presente parecer se justifica ao passo que a regra geral juridicamente vigente é justamente a da ampla possibilidade conferida a todos os cidadãos brasileiros de participar, em igualdade de condições, de licitações públicas e de celebrar contratos com a Administração Pública, desde que atendam aos requisitos legalmente estabelecidos para tal finalidade.

205.          Tal norma jurídica resulta da própria disposição contida no inciso XXI, do art. 37, da Carta da República, o qual prescreve:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

206.          Veja-se que o mandamento contido no inciso XXI guarda intrínseca conexão com os os princípios da "moralidade" e da "eficiência", estabelecidos no caput do mesmo artigo 37 da Carta da República, além do princípio da "isonomia", previsto no art. 5º, do mesmo Texto Magno, ao instituir que: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)".

 207.          Nesse sentido, é possível observar no tratamento constitucional da matéria de licitações um caráter dúplice ou bifronte.

208.          É que se de um lado, a prerrogativa conferida a todos de licitar para contratar com a Administração Pública busca selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública prestigiando o princípio da "eficiência"; de outro, a seleção do contratante pelo Poder Público através de procedimento isonômico e impessoal possibilita a todos concorrer pela possibilidade de firmar negócio com o Estado, pelo que se pode perceber uma nítida concretização dos princípios da "impessoalidade" e da "isonomia".

209.          Sob essa segunda faceta do instituto da licitação, é possível dele perceber até mesmo a concretização do princípio "republicano", à medida em que, a princípio, viabiliza a todos competir pela participação nos negócios da " res publica", isto é, da "coisa  pública".

210.          Daí a absoluta imprescindibilidade da comprovação, por meio do devido processo legal, da atuação antidemocrática do licitante ou contratado para que a aplicação das medidas tratadas no presente parecer se legitimem perante a vigente ordem jurídica.

211.          Caso contrário, o afastamento indevido de pessoas, físicas ou jurídicas, da possibilidade de licitar ou contratar com a Administração, sob a justificativa não comprovada de ter atuado de forma antidemocrática, poderá caracterizar desvio de finalidade do ato praticado e, consequentemente, a lesão ao princípio da "impessoalidade", previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal.

212.          Por fim, cabe desde já rechaçar qualquer interpretação da presente manifestação jurídica que venha a conferir ao termo "atuação antidemocrática" o sentido de nele incluir o regular exercício da crítica a governo ou a atuação institucional de qualquer órgão ou agente público.

213.          Ao contrário, o exercício legítimo da crítica, representa lídima decorrência do direito fundamental da "liberdade de expressão", salvaguardada pelo inciso IX, do art. 5º, da Constituição Federal: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

214.          Na realidade, o direito de crítica, quando regularmente exercido, é, inclusive, instrumento útil para o fortalecimento do Estado Democrático, uma vez que provoca os agentes públicos, políticos ou não, a refletir sobre a sua atuação e, a partir daí, desenvolver e implementar soluções para melhorá-la, otimizando, por conseguinte, o funcionamento do aparato estatal com vistas ao melhor atendimento possível dos anseios e necessidades coletivas.

215.          No caso da presente manifestação, o que se trata por "atuação antidemocrática" é a conduta ilícita, que desborda de qualquer parâmetro constitucionalmente estabelecido, desenvolvida justamente com o móvel de romper com o regular fluxo do processo democrático, o qual é fundado no cânone do exercício do mandato popular pelos agentes políticos democraticamente eleitos, nos termos estabelecidos no Texto Constitucional.

3.                  Conclusão

216.          Diante do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

a) A prática de desenvolver, ou ainda, de estimular ações atentatórias aos Poderes da República consubstancia violação ao Estado Democrático de Direito e ao princípio "republicano", ambos valores que lastreiam a Ordem Jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988, consubstanciando, à luz desta, condutas eivadas de alta carga de reprovabilidade do ordenamento jurídico pátrio;

b) A contratação administrativa de agentes que praticaram ou incentivaram atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito pode ser interpretada como situação incompatível com o princípio da "moralidade" estabelecido no art. 37, caput, da Constituição Federal;

c) A contratação administrativa de agentes que praticaram ou estimularam atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito pode ser interpretada como situação incompatível com os princípios do "interesse público", da "segurança jurídica" e do "desenvolvimento sustentável", ​estabelecidos no art. 5º, da Lei nº 14.133/21;

d)  É possível desenvolver leitura da Lei nº 14.133/21 que comporte a interpretação de que a prática ou a instigação de atos antidemocráticos é conduta passível de caracterização da ação de "comportar-se de modo inidôneo", prevista no seu art. 155, inciso X como infração administrativa;

e) Encampada a intelecção do item "d", as pessoas físicas ou jurídicas que praticaram ou incentivaram atos antidemocráticos, quando figurarem como licitantes ou contratadas no regime jurídico estabelecido pela Lei nº 14.133/21, estarão sujeitas à responsabilização administrativa, mediante a aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar", prevista no inciso IV, do art. 156, da Nova Lei de Licitações;

f) A aplicação da penalidade de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" pressupõe a realização do devido processo legal, nos termos do disposto no art. 158 da Lei nº 14.133/21, com a devida oportunização ao administrado do exercício dos direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa";

g) A aplicação da sanção de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar" ​não exclui a obrigação das pessoas físicas ou jurídicas responsáveis de ressarcir a Administração Pública dos prejuízos sofridos em decorrência de atos antidemocráticos;

h)  A Administração Pública possui o prazo de 5 (cinco) anos, contados da ciência do fato para instaurar o devido processo administrativo com o desiderato de apurá-lo;

i)   A instauração do processo administrativo para a apuração do fato demarca a interrupção do lapso temporal prescricional quinquenal para a responsabilização do agente licitante ou contratado em razão da prática de infração administrativa, nos termos do art. 158, § 4º, da Lei nº 14.133/21;

j) A aplicação das sanções de "declaração de inidoneidade para licitar ou contratar", bem como a de "impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública"  não possui efeito rescisório automático dos contratos em curso, impedindo tão somente a sua prorrogação;

l) É possível interpretar que a prática ou o incentivo de atos antidemocráticos são condutas passíveis de caracterizar a infração administrativa de "comportar-se de modo inidôneo", prevista no art. 47, inciso VI, da Lei nº 12.462/11, por parte do licitante submetido ao regime jurídico daquele diploma normativo;

m) A conduta de "comportar-se de modo inidôneo" é sancionada com a penalidade de impedimento de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, nos termos do art. 47, caput c/c inciso VI, da Lei nº 12.462/11, desde que comprovada em devido processo legal administrativo, com "contraditório" e "ampla defesa";

n) O prazo prescricional aplicável à pretensão de penalizar o "comportamento inidôneo" desenvolvido pelo licitante submetido ao Regime Diferenciado de Contratações Administrativas é de cinco anos contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a conduta do agente;

o) É competente para aplicar a sanção de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública prevista no art. 47, caput, da Lei nº 12.462/11, a autoridade responsável pela celebração do contrato ou outra prevista em regimento, a depender do caso concreto;

p) A aplicação da sanção de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública tem eficácia no âmbito do ente federativo em que foi aplicada e, na esfera federal, enseja o registro da penalidade do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores - SICAF;

q)  O reconhecimento da prática ou o incentivo de atos antidemocráticos por parte do contratado é passível caracterizar interesse público hábil a ensejar a rescisão do contrato administrativo, nos termos dos arts. 78, inciso XII, da Lei nº 8.666/93; e 137, inciso VIII, da Lei nº 14.133/21, desde que observadas as seguintes condicionantes:

l.1) a realização do devido processo administrativo legal, com a devida observância dos direitos ao contraditório e à ampla defesa do administrado contratante;

l.2) A efetiva comprovação da prática ou do incentivo de atos antidemocráticos por parte do contratado;

l.3) Decisão administrativa explicitamente justificada declinando as razões de interesse público a ensejar a rescisão administrativa;

l.4) O respeito aos direitos porventura adquiridos em decorrência do contrato administrativo;

l.5) a avaliação da proporcionalidade das consequências práticas possíveis da rescisão da avença para a Administração Pública .  

r)  A restrição do direito de pessoas físicas ou jurídicas de participar de licitações ou contratações com a Administração Pública é medida de caráter excepcional no ordenamento jurídico pátrio, porquanto a regra é justamente a ampla possibilidade de competição para negociar com o Estado;

s) É possível a utilização, em processo administrativo sancionatório, da prova emprestada que tenha sido licitamente produzida em processo judicial, desde que a sua apreciação tenha sido precedida da observância dos direitos ao "contraditório" e à "ampla defesa" do administrado;

t) A aplicação de medida ou sanção que venha a restringir ou impedir a participação de pessoas físicas ou jurídicas em licitações ou contratações públicas, caso não precedida da efetiva comprovação da conduta ilícita - no caso, a prática ou o estímulo de atos antidemocráticos - poderá vir a configurar desvio de finalidade;

u) A "atuação antidemocrática" tratada no presente parecer, não se confunde com o regular exercício do direito de crítica decorrente do direito fundamental à "liberdade de expressão"​, previsto no art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal.

É o parecer.

À consideração superior.

Brasília, 22 de março de 2023.

ANTÔNIO MARINHO DA ROCHA NETO
Advogado da União
Consultor da União Substituto

 Notas

  1. ^ MORAES, Alexandre de et al. Constituição Federal Comentada. [organização: Equipe Forense].  Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pág. 4
  2. ^ JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Pág. 104.
  3. ^ CARVALHO FILHO, José Dos Santos. Manual De Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. Pág. 22
  4. ^ MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. Pág. 777.
  5. ^ MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.Pág. 91
  6. ^ Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/21 Comentada por Advogados Públicos. Organizador: Leandro Sarai. São Paulo: Juspodvm Pág. ​1.367
  7. ^ TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 12ª ed. São Paulo: Editora JusPodvm. Pág.755
  8. ^ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. Pág. 1.618
  9. ^ FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos​: Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021. Vol. 2. Belo Horizonte: Fórum, 2022. Pág. 467
  10. ^ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. Pág. 1.617
  11. ^ Ob. Cit. Pág. 1.618
  12. ^ Ob. Cit. Págs. 1.381/1.382
  13. ^ Ob.Cit. pág. 765
  14. ^ Ob. Cit. Pág. 767
  15. ^ Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/21 Comentada por Advogados Públicos. Organizador: Leandro Sarai. São Paulo: Juspodvm Pág. ​1.280.
  16. ^ Ob.Cit. Págs.1.278/1.279
  17. ^ MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Pág. 249
  18. ^ MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010. Pág. 411
  19. ^ ZYMLER, Benjamin ; DIOS, Laureano Canabarro. Regime Diferenciado de Contratação - Rdc. 3.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2014. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/1144. Acesso em: 16 fev. 2023.Pág 287
  20. ^ JUSTEN FILHO, Marçal ; PEREIRA, Cesar A. Guimarães. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (rdc). 3.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2014. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/1277. Acesso em: 16 fev. 2023.Pág. 456/457
  21. ^ Ob.Cit. Pág. 290
  22. ^ Ob.Cit. Pág. 468
  23. ^ Ob.Cit. Pág. 460
  24. ^ Ob. Cit. p. 222
  25. ^ HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Editora Juspodvm, 2020. Págs. 941/943

Este texto não substitui o publicado no DOU de 12.4.2023